3.05.2012

«Toast», à ideia



A Valentim Magalhães

Caluniadores chatins, ó víboras daninhas,
sapos, escorpiões, chatas rãs coaxai!...
Babujai a peçonha e o próprio pus em tudo.
O sol há-de raiar com seu rútilo escudo.
Nós vamos para a Aurora... A grande não lá vai.

Vamos na grande nau. Já vemos terra perto,
glaucas ervas do mar e o marítmo funcho...
Vós, ó rãs, coaxai no lodo contra o barco!
Todo o sapo quer brejo, e toda a rã quer charco.
Toda a podre madeira o dente do caruncho.

Enquanto vós uivais como lobos na neve
no silêncio cavado e o ermo dos escombros,
nós vamos para o Sol, destemidos e bravos,
à luz das marés, quais reis escandinavos,
cabelos aos tufões, peito são, largos ombros.

Lassos dos temporais, imos buscando a Ideia,
"Dama branca" do mar, santa Índia chorada...
Mas já fulgem, ao sol, as cúpulas distantes,
zimbórios todos de ouro, e as árvores gigantes,
ao zéfiro abanando o leque da ramada.

Voam aves do mar aquáticas estranhas...
Já recortam o azul os palácios indus.
Avançam para nós coros de bailadeiras,
filas sacerdotais, palanquins, e bandeiras...
Esfuzia no cais um chuveiro de luz.

A fauna é desusada, a flora estranha e quente.
Lá vem o Samorim sob o seu pára-sol...
Avançam para nós, salpicados de espuma.
"Eis as Índias! Hurrah!" O sonho sai da bruma.
"Eis as Índias! Hurrah!" Avante para o Sol.


Gomes Leal

2.05.2012

Se te criei não sei



Se te criei não sei
nem se te quero assim
nem se é de ti que falo imagem que contemplo ou imagino
ou falo só de mim

As cores que antes espalhei e apaguei
sob outras cores em vão chamadas tão intensas sempre voltam
que em seu rumor afogam
tudo o que em volta ainda há ou houve ou haveria

Na floresta de lume quero ver bem e despegar-te
de mim mesmo e definir-te e definir-me e entender
onde este mudo apelo acaba e principia
Saber enfim não mais esperar-te ou inventar-te ou modelar-te
serena turva imagem destes dias sem destino
deles mesmos tecida em morte ou recomeço

E apenas sei
que em teus olhos sem cor feitos de mágoas e de mudança
luz um país que não vê e onde me vejo
e ao meu desejo inda para lá de todo o desespero e toda a esperança
num outro eu amanhecendo

Apenas sei sabendo que não sei
que é tempo de me ver para não te ver E cego só entendo
que neste halo a que me rendo ou eu mesmo entreteço
só não me vendo deixaria
de ver-te aqui de minhas mãos nascendo


Mário Dionísio

1.28.2012

Essa...



Essa, que hoje se entrega aos meus braços escrava
olhos tontos do amor de que aos poucos me farto,
ontem... era a mulher ideal que eu procurava
que enchia a minha insônia a rondar o meu quarto...

Essa, que ao meu olhar parado e indiferente
há pouco se despiu - divinamente nua -,
já me ouviu murmurar em êxtase, fremente:
- Sou teu! ... E já me disse, a delirar: - Sou tua !

Essa, que encheu meus sonhos, meus receios vãos,
num tempo em que eram vãos meus sonhos, meus receios,
já transbordou de vida a ânsia das minhas mãos
com a beleza estonteante e morna dos seus seios !

Essa, que se vestiu... que saiu dos meus braços
e se foi... - para vir, quem sabe? uma outra vez.
- segui-a... e eu era a sombra dos seus próprios passos..
- amei-a... e eu era um louco quando a amei talvez...

Hoje, seu corpo é um livro aberto aos meus sentidos
já não guarda as surpresas de antes para mim...
(Não importa se há livros muita vez relidos
importa... é que afinal, todos eles têm fim...

Essa, a quem julguei Ter tanta afeição sincera
e hoje não enche mais a minha solidão,
simboliza a mulher que sempre a gente espera...
mas que chega, e se vai... como todas vão...


JG de Araujo Jorge
Brasil

1.09.2012

Silenciosa música do cosmos


As bocas que estão fechadas
não estão caladas

Os braços que estão caídos
não estão imóveis

E os olhos que estão voltados
não estão sem ver

Homem só homem só
tu bem me compreendes quando digo
que não estás só
e bem entendes bem entendes
este longo discurso enchendo o ar
que vem de toda a parte e vai a toda a parte
eternamente
em surdina


Mário Dionísio