11.30.2011

Mil anos que viva



mil anos que viva não se apaga
a imagem sombria e vacilante
dum homem desconhecido numa esquina
com um lenço na mão manchado de sangue

uma imagem sombria e vacilante
cambaleante no regresso instável
das zonas baças onde o tempo pára
com um lenço na mão manchado de sangue

cambaleante no regresso instável
sem se lembrar da rua onde morou
só com uma ténue sombra do passado
no lenço na mão manchado de sangue

ninguém sabia a sua história
ninguém ouvira a sua voz
de seu só tinha bem pesado
um lenço na mão manchado de sangue

não tinha voz não tinha nome
não tinha pais não tinha amigos
não tinha lar só tinha um lenço
na mão manchado de sangue


Mário Dionísio

11.25.2011

Noite vazia



Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.
Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.
Florida e ondulada suspensão da mágoa.
As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adivinhada.
O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausência do espaço.
E a morte espreitando a lentidão
irradia baçamente a sua despedida.

Noite vazia.

As aves brancas do cérebro
inutilmente abatem as suas asas!


Edmundo de Bettencourt

11.19.2011

Versos a um cão



Que força pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vemiformes.

Cão! -- Alma do inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...

E irás assim, pelos séculos adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!


Augusto dos Anjos
Brasil

11.18.2011

Por um dia de inverno



O homem do talho morreu. Deixou mulher,
dois filhos e carne fresca estendida como roupa
no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão
pelo cachaço. Lembro-me da peixeira
que nos acordava de manhã «peixe fresco
tão vivinho» e como era caro o estertor do linguado.
Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,
o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos
que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente
apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho
vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária
de rosto descoberto para a família e os curiosos. O homem
do talho morreu cansado, mas agora está fresco:
foi abatido ontem, será embalado às quatro da tarde.


Rosa Alice Branco

11.15.2011

Interlúdio


Dizer adeus não é dizer adeus
nem desdizer o que se disse já,
mas dissolver nos olhos vinte véus,
dar-lhes, salgada, a liquidez capaz

de transmutar a lâmpada ilusória
do lume antigo em cinza cinzelada
- pois nada do que é vivo se demora
e sempre é tudo a sucessão de nada.

Dizer adeus é só respirar fundo.
Não perguntar se te valeu a pena
o que passou, ou se me foi fecundo,

mas agregar, com gratidão serena,
de novo um potro novo ao meu poema,
como se dele dependesse o mundo.


António Luís Moita

11.13.2011

Tempo habitual



De nojo, o tempo, o nosso,

A perfídia estrumando
No presumir da carícia branda e sorriso
De todos.


De raiva o tempo, o nosso,
Céu, mar e terra abrasando
Em clamor de labareda e navalha afiada
E sangue.


De pavor o tempo, o nosso,
A primavera assombrando.
Exílio de ventres a fecundar e tudo o mais
Que a faz.


De amor o tempo, o nosso,
Onde uma voz espalhando
A boa nova do pântano fétido da noite
Imposta?
De nojo, de raiva, de pavor,
O tempo transido
Do nosso viver dia-a-dia!
Mas não de amor...


Tomaz Kim

11.11.2011

Protopoema Angola 63



na hora das verdades conseguidas
na certeza que a esperança trás
três letras de bronze firmes erguidas
gritando límpidas fulgentes PAZ

na hora das angústias consentidas
na certeza humana de sempre opor
às fábulas por demais repetidas
a pequena bela palavra AMOR

na hora das noites adormecidas
na certeza plena de humanidade
as universais forças reunidas
construindo total FELICIDADE


António Jacinto
Angola

11.09.2011

Corpo de Esperança

A António Ramos Rosa


Neste curto espaço entre nós e a morte
tão mal gastamos nossa longa despedida!

Tu, amor de quem não sei o nome
de onde não sei a sorte,
vais passar além deste poema que era teu
e assim, de morte construída,
teus passos vão enchendo a minha vida.

Outro nome será flor sobre os teus lábios,
e outros dedos tocarão a límpida frescura
dos teus ombros quase d'água
e saberão de cor o horizonte branco do teu corpo...

E assim iremos de olhos futuros,
tu, envelhecendo da minha ausência,
eu, a erguer-te na curva da esperança,
e outra mão desmanchar a tua trança
e hei-de beijar teu rosto onde não eras
e serão só o que há antes das horas mais tristes
e será tarde até saber que não existes.

Neste curto espaço entre nós e a morte,
onde me vais perdendo,
onde te vou buscando,
nosso amor se vai embora alimentando
de despedida;

não porque morra o tempo em teus braços,
mas a vida.

Vítor Matos e Sá

11.08.2011

Nuvens perfumadas


Sento-me à beira da cama que nos acolheu:
um rio que recebeu o músculo,
o sangue rumoroso e não partiu.
Um lago azul de mais e por demais queimado onde,
semi-acordada, dormes.
Uma feiticeira.

Disseste ontem à noite, acorda-me quando acordares.
Não tive coragem.

Mas o sol começou a trepar pelos lençóis
onde fomos espuma, excitação.
Minha boca não deixou que o sol entrasse sozinho.
Quando acordaste já eu navegava em nuvens perfumadas.
As árvores de ti sorriam, balançavam.


Casimiro de Brito

11.07.2011

Manual de jardinagem


É preciso mudar a terra do poema,
talvez arranjar um vaso maior
e deitar estrume em cada vaso.
Ainda ontem removi a terra
e vi no peso das palavras como escondem
o segredo da leveza.
É melhor esperarmos pela primavera/
por todos os meses que faltam
para hoje. Até lá
regarei o vaso como de costume.
Tenho exactamente o tempo de uma pausa/
atravessa o poema com o teu passo ágil
e senta-te comigo.
Que palavras nos fizeram falar? O que buscamos
no silêncio? Qual a melhor hora
para regar a água?
Caminhemos um pouco. No fundo do vaso
a razão declina no corpo do poema.
Havemos de a retirar com a pá que floresce na primavera/
depois atravessamos verso a verso
à superfície
sem vaso que contenha a humildade da terra.


Rosa Alice Branco

11.06.2011

Pálida e loira



Morreu. Deitada no caixão estreito,
Pálida e loira, muito loira e fria,
O seu lábio tristíssimo sorria
Como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,
Foi descansar no derradeiro leito,
As mãos de neve erguidas sobre o peito,
Pálida e loira, muito loira e fria...

Tinha a cor da rainha das baladas
E das monjas antigas maceradas,
No pequenino esquife em que dormia...

Levou-a a morte na sua graça adunca!
E eu nunca mais pude esquece-la, nunca!
Pálida e loira, muito loira e fria...


Alvaro Feijó


Mudançar


Repor
na planta da cor brancura
em pedra solicitada

Reler
por vacilação das sílabas
em escuridão afundada

Rever
por olho areado com águas
a imagem contaminada

Reter
no músculo oxigenado vaso
areal terra aterrada

Resistir
ao cântico suado no temor
a evolução revoltada

Reaver
do padre eterno esquecido
fé febril equivocada

Rematar
pontilhados no voo manual
asa de vazio blindada

Reacordar
quando o tempo do morto é
vício pele reciclada

Recomeçar
linguajar contínua marcha
vivente reinventada


Fernando Lemos

11.05.2011

Aqui de novo estou, cantiga,



Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com os seus passos,
afinal tão leves - a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia do regresso; assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.


Eduardo Guerra Carneiro

Café Schiller



Foi tudo em vão, novamente.
Estava a muitos quilómetros de Amesterdão,
se é que me percebes, embora gostasse
das riscas negras dos sofás, do metal
antigo dos candeeiros, do andar
tão firme de quem servia as bebidas.

Esta mulher vai entrar hoje
no meu passado. Não sei como se chama,
nem me interessa sabê-lo. Sorriu-me,
ou julguei que me sorriu, enquanto eu pagava
dois descafeinados, uma água com gás
e um Jameson que sabia mal, a desamor.
Vou pedir-lhe de troco o esquecimento,
a curta memória da blusa que lhe comprimia
o peito e dava às costas
um jeito irrepetível de prelúdio.

Eu, que vou morrer, desejei-te.


Manuel de Freitas

Rêve oublié


Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti

Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo

Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha

E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata


António Maria Lisboa

Amor



No gesto, nas rugas,
nos olhos de um homem,
na seca floresta,
na terra gretada,
na tímida angústia
do sol que nos resta,
nas aves que tombam
feridas na estrada,
no pó que esvoaça,
na abelha que zumbe,
no vento que estala
chicotes no mar,
na lava latente,
nos tristes amantes,
nos braços que imploram
morrer devagar,
na rua, num beco,
num quarto, num beijo,
no verso que range,
no último sonho,
no vão realejo
que geme no exílio
da noite sem luar...
- em tudo se exprime,
tocando a rebate,
ingénua, terrível,
urgente, precisa,
a doce palavra,
sonora palavra
da sobrevivência!


António Luís Moita

Grande écran



No grande écran
a festa do homem lobo do homem
e a sua mulher de bicicleta
até que um século de furor
abra a cratera donde irrompe o rosto do poeta
as suas mãos borboletas gigantes
os seus pés peixes voadores
a sua boca asa de fogo branco
e outro século
erga a pirâmide de palavras
que se derramem docemente
de anel em anel
até o último século


António José Forte

A um pássaro

Cristal de azul, chamado
pela canção das asas,
um novo dia pousa sobre as casas; tu,

coração, de pássaro fulgindo,
corpo do bem-amado
amor que abre na noite o arvoredo. em fogo,

oculto em luz, agora
quem dera ouvir a fábula, o enredo
a rede que nas horas se desprende.

em minha mão humana
não pousam, que passavam, os cantantes
nomes vivos das aves. erguer-me:

em claridade voas. terra
a nenhuma memória subjugada, chama
sulcando o ar, que fontes

de bruma incendiadas levantaram
a simples melodia do teu canto?
neve

alada,
ouvir sem voz o vivo vento, corpo
de melro ou cotovia ou nome absolto

no espaço de ar, a vibração da cor;
ou santo colibri, volátil signo;
ou palavra de cego acorrentado;

que luz, em tuas folhas, te deu sombra
e harmoniosa, passageira concha?
que livre amor te inventa, derradeiro

sinal da noite ardendo em melodia? ou tu,
eternamente repetindo o instante
em teu cinzel de azul nos desejaste?

nenhum secreto nome, nenhum mito
te habita touxinol ou sapo aflito
mas o sopro da aurora nas colinas;

és, na ramagem, folha que contempla;
trapo de céu, ou rio que cegos vemos,
a transparência que o pudor vestiu.


António Franco Alexandre

11.04.2011

Retrato do artista em cão jovem



Com o focinho entre dois olhos muito grandes
por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra


António José Forte