6.30.2010

Nascer de novo



Nascer: fincou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não advinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou Eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

6.29.2010

Os instrumentos

Times Square, New York Art Print

Desapareceram os símbolos das cidades.
Os instrumentos dos símbolos ainda não desapareceram.

É possível que,de repente,de leste a oeste,de oriente a ocidente,
Nas paredes,no ar,no solo,nos canteiros,
Nos velhos troncos de árvores,
Nos jogos de água viva,

Nas mudas bibliotecas,em livros esquecidos,
Nos palcos dos teatros,nas eléctricas luzes,
Nas orquestras sem pátria dos músicos planetas,

Se revelem sinais,locais de Ásias secretas.

Mas da cegueira à paz,vão ângulos de som.
Os vértices de amor,oscilam ténues fumos.

Os símbolos são homens,esventrados em explosões,
São Osíris dispersos.Deuses em negros versos.
Dos olhos sem retinas - que já todos desvelam,
Dos gestos essenciais - pelos quais todos choram,

Se compõe esta frente em marcha silenciosa,
De esotéricas vidas e histórias demolidas.

De superfícies brancas em sinfonias brancas,
De surdos e de loucos,orquestradas nas ondas.

Bronzes de águas abertas,nas cascatas libertas,
Dos países do Ar para os dias de Sombra.

Por visitar a Lua recebe-se a Loucura.
Por visitar a Luz,recebe-se a cegueira.

É preciso dormir como quem apodrece
E sossegar no pó,sem pena de ser só.


Natércia Freire

Exortação


Negro
para quem as horas são sol e febre
que colhes
nesse ritmo de guindaste.

Negro
para quem os dias são iguais
que respeitas teu patrão e senhor
como água que mexe o engenho.

Negro!
Levanta os olhos prao sol rijo
e ama tua mulher
na terra húmida e quente!

Francisco José Tenreiro
São Tomé e Príncipe


Autobiografia


Estive convosco em muitas palavras.
Algumas levaram-me ainda mais perto.
Com outras fiquei apenas mais só.

De muitas não vi que rosto as guardava.
Por outras me dei a quem não pedia.
Onde foram mentira alguém me faltava.
Mas todas cumpri por quem me cumpria.

E passaram ardendo em novos combates,
cobriram silêncios, provaram mistérios,
fizeram amigos que nunca terei.

Por serem verdade me trazem aqui.
E quando as sonhais na vossa esperança,
Um irmão me procura por entre as cidades
com todos os rostos que perdi.

Vítor Matos e Sá
Moçambique

Éramos eu e tu


Éramos eu e tu
Dentro de mim
Centenas de fantasmas compunham o espectáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.

Mãos agarradas
Pulsos acariciados
Um afago nas faces.

Éramos tu e eu
Dentro de nós
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
Corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.

Éramos tu e eu
Dentro de nós.
As contracções cada vez mais rápidas
O descontrolo
A emoção
A ciência atenta
O oxigénio
A mão amiga

De repente a grande urgência
A Hora
A Violência
Éramos nós libertando-nos de nós.

É nossa a dor.
São nossos o sangue e as águas
O grito é nosso
A vida é tua
O filho é meu.

Os lábios esquecem o riso
Os olhos a luz
O corpo a dor.

A exaustão total
O correr do pano
O fim do parto.


Dina Salústio
Cabo Verde

6.28.2010

Mulher



quando o ventre é o mar
quando o ventre é a água
salgada
numa boca
quando o ventre é a fonte
quando o ventre é a forca

Yvette K. Centeno

Ordem de esquecimento

Lion at Sunset Art Print

Cruel é o camarão tanto se dar ao esforço da comida com
tanta perna a pedalar no limo, a filtrar o céu das águas

Reter em cada sorvo
não mais do que além do que a milésima porção do seu
tão leve corpo,
ainda assim pesado, difícil de suster, e trabalhoso.

Melhor é o leão só carecer do vento que anuncia a caça,
erguer o olhar, aferir o curso da manada, lenta ao seu
encontro e à margem do alcance, explodir a massa
muscular
rasgar a chana a floração avulsa de uma ferida quente.

Para além disso, breve audácia, o leão namora e dorme.

Habita o cio.


Ruy Duarte de Carvalho (Angola)


Vou pertencer você para uma árvore.



Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.


Manoel de Barros
Brasil

Angolares



Canoa frágil, à beira da praia,
panos preso na cintura,
uma vela a flutuar...
Caleima2, mar em fora
canoa flutuando por sobre as procelas das águas,
lá vai o barquinho da fome.
Rostos duros de angolares1
na luta com o gandu3
por sobre a procela das ondas
remando, remando
no mar dos tubarões
p'la fome de cada dia.

Lá longe, na praia,
na orla dos coqueiros
quissandas4 em fila,
abrigando cubatas,
izaquente5 cozido
em panela de barro.

Hoje, amanhã e todos os dias
espreita a canoa andante
por sobre a procela das águas.
A canoa é vida
a praia é extensa
areal, areal sem fim.
Nas canoas amarradas
aos coqueiros da praia.
O mar é vida.
P'ra além as terras do cacau
nada dizem ao angolar1
"Terras tem seu dono".

E o angolar1 na faina do mar,
tem a orla da praia
as cubatas de quissandas4
as gibas pestilentas
mas não tem terras.

P'ra ele, a luta das ondas,
a luta com o gandu3,
as canoas balouçando no mar
e a orla imensa da praia.

Alda do Espírito Santo
S. Tomé e Príncipe



1 - Angolar: grupo étnico são-tomense. Segundo a tradição portuguesa, sem confirmação científica, teria naufragado, em frente ao extremo sul da Ilha de São Tomé, um barco transportando cativos (1550). Estes, logrando alcançar a costa, teriam dado origem ao Povo Angolar. Admite-se, todavia, que os angolares tenham alcançados a Ilha por seus próprios meios, provenientes do Continente Africano;
2 - Caleima: ondulação forte do mar;
3 - Gandu: tubarão;
4 - Quissanda: tapumes feitos com folhas de palmeira;
5 - Izaquente: frutos cujas sementes são caracterizadas por um alto poder energético.


Eu e o Mosquito




Eu e o Mosquito
trepamos as quatro paredes
do meu quarto,
olho no olho,
cada um se esmerando
para matar o outro.
Enclausurado o veneno
em cada uma das quatro patas
traçamos de combate, as estratégias
estudamos o currículo do inimigo,
pleno de condecorações,
súbito, o medo nos dilui e nos mata,
mas ainda trocamos o último olhar,
o olhar do nojo, de sabermos
que nós os dois, o Mosquito e eu,
somos os animais,
que mais matamos no mundo


Mbate Pedro
Moçambique

6.27.2010

Nova Lira – Canção



Quem embarcou no porão
Fechado a sete chaves,
Apertado entre traves,
Sem ver sol sem ver a lua?
Foi o preto!

Quem deixou a terra,
-filho ingrato que fugiu
ao pai e à mãe que não mais viu,
p’ra ir acabar como um cão?
Foi o preto!

Quem a mata derrubou,
E cavou e semeou
E co’a sua mão de bruto
Cuidou, recolheu o fruto?
Foi o preto!

Quem fez o ‘senhor ’– o patrão;
Lhe tirou da vida aflita
Lhe deu senhora bonita
E importância e situação?
Foi o preto!


Marcelo Veiga
São Tomé e Príncipe

Pão e suor



I

De sol-a-sol
Espigam no teu rosto
Moléculas de suor

Já nos caminhos
Da África
América
Europa
Tua partida foi necessária
Na conjugação das coisas
Num dualismo constante
De vida & lida
O teu corpo
Singrou mares de todos os Oceanos
Horizontes de toda a esperança...

De porto a porto
Crescem sílabas na saliva da boca
E revive no teu rosto
A cicatriz da saudade

Na tempera de catabolismos
Trazes nas páginas da vida
Lágrimas salgadas da partida

Regresso
Terra amor-mãe-cretcheu

Amargura-tristeza-saudade
(São sentimentos esquecidos)
Que confluem
Em ambiente
De festa & alegria

E já crescem sílabas na boca
Ao molhar a palavra
Pelo canal da garganta
Saboreando o grogue de terra!

II

De sol-a-sol
Estampam no teu rosto
Moléculas de suor

não há lágrimas que não encham
A fonte da tua nostalgia!

Pitagoricamente
Teorias + teoremas
Pão & suor
Razão & resistência + certeza

— não há pão que não custa suor
não há suor que não custa sacrifícios

E
Enquanto as enxadas
Sucumbem a estiagem
Sacrifícios nossos continuarão

E
Suor & certeza
Espigarão no teu rosto
Procriando o pão!



Canabrava
Cabo Verde

6.26.2010

Te Deum



Opressiva
a inquietude
no carrilar dos bronzes.

Libreto
de mil cactos
em mudo refrão dos desertos.

Dobre
de sinos
em solene Te Deum
de graças pela Maria.

Noémia de Sousa

Poema

 (700x489, 184Kb)

vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.

Eugénio de Andrade

6.25.2010

Torresmos à machimbombo queimado



À partida o machimbombo parecia
um ónibus lotado de gente
em viagem.

Lá para o quilómetro 20 a oeste da Gorongosa
chaparia e respectivo tejadilho ficaram
fuliginoso similar de frigideira
fritando várias doses de torresmos
derivantes fósseis de passageiros
interrompidos antes da terminal.

Sobra este prosaico odor da sintomática
machimbombesca fotocópia de esquife.

O impaciente estardalhaço dos tiros
ainda por cima esfrangalhou o original.

José Craveirinha
Moçambique

Xirico



As Palavras Amadurecem

domesticadas asas estrebucham
o ancestral sonho sitiado que
a exiguidade geométrica da gaiola calca
enquanto ouvimos rádio na sala de estar

dura um instante infinitesimal a pausa do locutor
e nesse vazio
breve
oportuno
subversivo o pássaro entoa as cores do arco-íris
os sons fluem em cascata através dos arames
e estacam na sala
- vá tu saber se o bicho está triste ou alegre"

XIRICO: pássaro e marca de transístor muito popular

Simeão Cachamba
Moçambique

Prólogo



O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs, despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.

Manuel de Freitas

Moçambique


Quando me sento descalça
sobre o sapato do menino pobre
que me enche o pé
muito mais que outro qualquer
me lembro que existir
não é sozinha
é com toda gente.
E me lembro
que tenho de embebedar-me de ti
Moçambique
Porque tenho saudades de mim

Tânia Tomé

6.24.2010

Terra-Longe



Aqui, perdido, distante
das realidades que apenas sonhei,
cansado pela febre do mais-além,
suponho
minha mãe a embalar-me,
eu, pequenino, zangado pelo sonho que não vinha.

"Ai, não montes tal cavalinho,
tal cavalinho vai terra-longe,
terra-longe tem gente-gentio,
gente-gentio come gente"

A doce toada
meu sono caía de manso
da boca de minha mãe:

"Cala, cala, meu menino,
terra-longe tem gente gentio
gente-gentio come gente".

Depois vieram os anos,
e, com eles, tantas saudades!...
Hoje, lá no fundo, gritam: vai!
Mas a voz da minha mãe,
a gemer de mansinho
cantigas da minha infância,
aconselha ao filho amado:

"Terra-longe tem gente-gentio,
gente-gentio come gente".
Terra-longe! terra-longe!...
- Oh mãe que me embalaste
- Oh meu querer bipartido!

Pedro Corsino Azevedo
Cabo Verde

6.23.2010

Marginal do teu corpo (a confissão do outro)



No teu corpo adormeço
Horas longas permaneço
No asfalto da noite…
Revejo cenas do dia

Repasso actos alheios
Extasiado!
Vejo-te…virgem… Beijo-te nua
Serena só para mim!

Viro-me todo… Abro tudo…
Cuidados me cercam
Tuas curvas lânguidas… imagino:
– invejo o prazer alheio:
– deixo fluir as mágoas
Beijam-me águas luandinas
Na curva da madrugada…

Sinto a maresia
A farfalhar-me o ouvido
Solto-me…Venho-me…
Esqueço-me de tudo!
Tudo esqueço
Até minha condição precária!

Isabel Ferreira
Angola

Despedida


Parto para encontrar com o esquecer-te
Deixo-te todos os meus sonhos
Para que continues a escrever tua vida
Rasuro as palavras que não te disse
Calo os beijos que tanto te desejaram
Enganei-me, ludibriei-me, falseei-me
O tempo nada decidiu, nem definiu
Não quero mais qualquer porta aberta
E nem o meu caminho a te aguardar
Recolho os meus delírios e quimeras
As confissões tolas que te fiz
Entre sorrisos, disfarçando verdades
Calo-me porque meus lábios e mãos

Não mais te redimem de teus temores
Ou te resgatam de ti mesmo
Em meio as tuas indecisões e escusas
Foste adiando o conjugar do meu amor
No tempo presente que a ti se oferecia
Amor que te pronunciava em meus versos
Declarando anseios e desejos insones
Imaginavas que eram meus poemas
Os silêncios das minhas fantasias
Libertos da asfixia das minhas mãos

A saudade invasora e condescendente
Ainda busca um motivo para permanecer
A memória da ilusão declama teu último poema
E fantasia-me em tuas linhas e letras
Como se eu fosse a que toca tua inspiração
As mãos teimam em acariciar os teus gestos
E as palavras que foram sussurradas
Nos sonhos do meu corpo que te embalava
Quando apenas a lua sabia de mim
E ruborizava, adivinhando intenções

Toco os meus lábios e neles já não sorris
Há um gosto de despedida em meus olhos
No meu lamento nem mesmo a lágrima
Acaricia a solidão do meu rosto
Soluça em minhas mãos o gesto
Que confinaste no cárcere do talvez
Apenas isto e tudo que não houve
Como a me confirmar que sempre foste
Uma irônica possibilidade de felicidade
Paralela do infinito em meu destino.

Fernanda Guimarães
Brasil

Inscrição para um portão de cemitério

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"

Mário Quintana (poeta brasileiro)


6.22.2010

Teias da Memória



Na baça melancolia do tecto
bilros de teia bordam solidão
enquanto meigos sussurros de sombra
no brilhante mutismo do espelho
recitam estrofes de poeira.


Noémia de Sousa

Meu Moçambique



Minha África suburbana.
Eu sei-me Moçambique,
cisterna no pecúlio dos deuses.
Um Zambeze inteiro escala a língua
escorre-me pelas pernas
ramifica nos canhoneiros,
laça os peixes inquietos nas sementes
engolfa-se nos mpipis bêbados nas timbilas.
Eu sei-me Moçambique,
no cume das árvores, na sede incontinente
da minha falange, do Rovuma ao Incomati,
no xigubo terrestre dos pés descalços
e em todos os tambores que surdem
das mãos coloridas nos braços em chaga.


Tânia Tomé

6.21.2010

As palavras que me vestem


Ao Nuno Lacerda Lopes

O que quer dizer
«toco na ponta dos meus dedos»?
O que são os meus dedos senão eu?
O que sou eu no essencial?

O leitor está sempre no futuro
da mão que escreve
mas está sempre no passado
do poema que lê.

Habituei-me a olhar algumas palavras com serenidade.
É com elas que peço café
chamo as roupas que me vestem
meto-me no carro e chego até aqui
onde a minha mão se perturba com o odor de cada palavra
com a marca invisível que deposita nos dedos.

Sinto-os inquietos
dizem-me que a palavra canta
às vezes tão alto que a urze cresce
muito depois de chegar ao fim da memória
onde o terreno é fértil para que tudo seja esquecido
e nasçam então os únicos ouvidos
e o verdadeiro aroma do café.

Às vezes imploro à palavra que se torne transparente
e a mão olha-me
afagando as sílabas
como se pudesse saber a perturbação ínsone
que a própria plenitude desenha,
ou as tempestades de areia que vão ter connosco ao sono
e nos arrastam como simples folhas
a quem o outono facilita o trabalho do vento.

Não fosse assim
não estivéssemos tão perturbados
pelo orvalho que se escreve com a humidade das letras
na própria ignorância da mão

e talvez o poema fosse um exercício de estilo.


Rosa Alice Branco

Magnólias



nascem vazias de amarelo
as magnólias que se inclinam
oblíquas a uma terra despovoada
da dimensão da flor
murmuram suas pétalas pelo vento
galopante e assustado fugido dos
desertos que eram florestas

lentas azuis as estrelas estalam
agapantos jacarandás
sangue adormecido dos fenómenos
que os olhos à luz fazem desaparecer

ausentes as asas adormecem
trilhos estilhaçados na terra
onde o longe e a distância
permanecem na tortura
do pensamento
sem etecétera

Ó as searas de flores os
gerânios as açucenas
os corações abertos dos rapazes
aos lilases
perfume de entrega permanente
musculado e frágil advento
de um tempo que há-de partir
mergulhado nos estames das mãos
para se transmutar em beijos
oferecidos às bocas

no chão da terra aturada e escura
as magnólias pálidas sombrias
escorrem mel torturado e morno
onde rapazes deixam o abraço
doce permanente como o pecado

o orvalho da manhã reclama as
magnólias que fecundadas devolvem
à terra o sangue
dos rapazes exaustos cansados

é manhã a terra toda de repente
desmaia atormentada nua e quente


Henrique Levy

Perguntarei ao Cristo


Perguntarei ao Cristo
Se um dia puder
perguntarei ao “Cristo”
porque o pintam branco
Os homens do norte.
Perguntarei ao “Cristo”
porque será que
sendo judeu, o amam tanto,
odiando os outros judeus.
Perguntarei ao “Cristo”
porque odeiam tanto
O homem negro,
os homens do norte.
Se um dia puder
perguntarei ao “Cristo”
“quando virá”,
para conversarmos e depois lhe dar
as boas noites e dormir, que os homens do norte
Estão surdos.

Delmar Maia Gonçalves

6.20.2010

Demissão


Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis"

Depois



Quando morrer não envelheço mais.
Vou ficar tal qual sou
Na partida do cais,
Na asa aberta ao derradeiro voo.

Vou, já podre o fruto
Do pomar que eu era.
Não quero luto:
Volto na Primavera.

Irei, então, recomeçar
Uma existência secreta,
Com os olhos no mar
E a saudade no poeta.

E na tragédia do solitário
Que de si próprio se escondia
Tirar-lhe o esqueleto do armário
E libertar-lhe a poesia.


António Manuel Couto Viana

A minha dor




Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.

E o preto que gritou
é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia.


Noémia de Sousa

6.19.2010

Protopoema


Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

José Saramago

Química



Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis"

Para ti


Olhos perdidos perscrutando o mar...
... Para lá... que horizontes se marcaram?...
– África d’oiro e sonho! a perdurar
lembranças d’outros dias que passaram...

O curso?... – Uma aventura!...
A vida?... – Um bem, firmado em grandes Ideais!...
Depois...
(que importa o que é «depois»,
quando se tem a certeza
de sermos sempre DOIS!?...)

Alda Lara (Angola)


Tontura




ainda apagam pálpebras de volta à tontura
ainda o sentimento da nossa longa história
a ruína vai da notícia à revolução
palavras mortas nunca mais preenchidas
os rios demorados no sintoma dos países
e tudo passa e o poema indaga
o dia que acontece como uma ruína.

João Tala
Angola

Mesquita Grande




Neste raso Olimpo argamassado em febre
e coral, o Deus maior sou eu. Por mais
que as pedras, os muros e as palavras afirmem
outra coisa, por mais que me abram o corpo
em forma de cruz e me submetam a árida

voz às doces inflexões do cantochão latino,
por mais que a vontade de pequenos deuses
pálidos e fulvos talhe em profusas lápides
o contrário e a sua persistência os tenha
por Senhores, o sangue que impele estas veias

é o meu. Pórticos, frontarias, o metal
das armas e o Poder exibem na tua sigla
a arrogância do conquistador. Porém o mel
da tâmaras que modula o gesto destas gentes,
o cinzel que lhes aguça a madeira dos perfis,

a lenta chama que lhes devora os magros rostos,
meus são. Dolorido e exangue o próprio
Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada

magreza de um velho cojá asceta.
Raça de escribas, mandai, julgai, prendei:
Só Alah é grande e Maomé o seu profeta.

Rui Knopfli
Moçambique

De súbito o implorável, a mão está




De súbito o implorável, a mão está
presa para sempre à luva ou será esta
que sem remédio prende a mão suada?
“não importa” diremos, no entanto, convictos
de trágica importância da luva presa à mão,
da mão rígida, imbecil, fechada,
pronta para o atentado, incapaz de defesa,
da mão imprópria para o cumprimento,
para a carta de amor, para o poema,
da mão de gala, solene e enluvada.
A mão jaz decepada e, no entanto, vestida,
luxuosíssima mão de primeiríssima classe,
mas inútil, quebrada,
enluvada e distinta, na valeta.

António Rebordão Navarro


6.18.2010

Eu luminoso não sou



Eu luminoso não sou. Nem sei que haja
Um poço mais remoto, e habitado
De cegas criaturas, de histórias e assombros.
Se, no fundo poço, que é o mundo
Secreto e intratável das águas interiores,
Uma roda de céu ondulando se alarga,
Digamos que é o mar: como o rápido canto
Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável
O movimento de asas. O musgo é um silêncio,
E as cobras-d'água dobram rugas no céu,
Enquanto, devagar, as aves se recolhem.

José Saramago

Arte de Amar


Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis"

Aprendamos, Amor


Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis"

A torto e a direito



Sussurram tempos e contrariedades,
caem dias a torto e a direito.
Fica quem tudo a eito leva,
e não quem de todo a nada chega.
Escondo-me atrás de mim
e vejo-me tinto no copo,
do olhar do mundo afastado.
Olho-me e ouço as cousas ficarem
no fluir de um sussurro, no osso
de um momento, teus lábios
fugidios na ponta da noite além
onde me aconchego e escondo,
torto em sábios dias aí tecidos,
aqui direito em nós de luz.

Adriano Alcântara
Moçambique

De manhã cedo



De manhã cedo
acordas
para lavar a roupa
que trazes suja
no teu pensamento
esfrega esfrega esfrega

Joaquim Falé
Moçambique

Uma canção de primavera


Nesta flor sem fruto que aspiramos
Eu vejo coisas que ninguém descobre:
Vejo a raiz, o caule, os ramos,
Vejo até o sulfato de cobre.

E vejo coisas que ninguém mais vê:
Vejo a flor a desenhar-se em fruto
E quer ela o dê ou o não dê
É esse o fim por que luto.

in Permanência

Antero Abreu
Angola

Tudo o que foi quase um poema


Tudo o que foi quase um poema veio com o teu âmago
e talvez seja essa febre interior que te faz
corrigir com as lágrimas a posição
dos guaches.

Adriano Botelho
Angola

Do mar o incriado nasce



A ilha existe não porque a achasses
mas porque a nomeias coração do vento
capaz deste segredo vontade grega
de amar o que a alma intui e cria.

E de tal modo ela seria e é desejo
que tudo esqueço para vê-la nua
devir do sentido no seu sentido vago
louco amor agreste que a utopia apela.

Na ausência de limites para o que sonhas
vacilante avanço ágil mas sem asas
sem medida luz do fragmentado verbo.

Rio e choro sendo a máscara e o rosto
Nomeado língua capaz do que não sei
Suspenso o tempo do mar o incriado nasce.

(Ilha de Moçambique, 1952)
Duarte Galvão / Virgílio de Lemos
Moçambique

6.17.2010

Retrato do poeta quando jovem


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

José Saramago

Desejos de Junho



no lento triunfo da noite
estremece o coração poema
amantes sonham-se deuses
desfeitos enlaçados pelo engano
da mísera solidão devotos

no leito os seus corpos de sede
docemente guardam beijos
neles os cetins e os clarões
das tochas crepitam melodias
de alfazema místicos apagados
encurvados no gesto do abraço
êxtase perdido como o sol sem forças

beijos adivinham instintos
angústias de sono nos lábios
tépidos do novo dia

as almas jardins do corpo
unidas à natureza pelas
raízes das águas encontram
a beleza na claridade
do suor nocturno das danças
sagradas inebriantes mornas
no túmulo ébrio
onde o sangue se agita...
nascem rosas
acordam floridos na virgindade
dos seus olhos onde os anjos
servem doces lágrimas

renova-se o mundo
pedaço de tempo
que lhes sobra...


Henrique Levy

Saudades de África



A cada dia descubro o meu amor por África
África da minha vida
África por mim amada

E sonho
Numa África sem preconceito
Onde a vida tem sentido
Onde tudo é maravilhoso

Quero recordar
Esta África dos mufanas inocentes
Das mamanas do bazar
Onde se encontra a felicidade

E quero voltar
À casa onde cresci
Ir ao liceu onde estudei
E as belezas da minha terra escrever

Apetece-me correr pelos becos da Mafalala
Beber a sua da Zambézia
Ouvir o som do tufo em Nampula

Desta África tenho saudade
Pois por lá encontrei a felicidade
E deixei muitas amizades

Não sei se é ilusão
Talvez seja uma visão
Mas por África tenho paixão

Dário Caetano de Sousa
Moçambique

6.16.2010

Para escrever o poema

Pomba da Paz Art Print

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

Nuno Júdice