12.31.2009

Fim de ano



São os meses
São os dias
as horas todas as vezes

Quantas depois
se iniciam
retornando ao seu alpendre

São os anseios
São o sonhos
a esperança e o devaneio

Quando o ano
no seu fim
torna ao começo em seu veio


Maria Teresa Horta

Lápides




Não sou um velho vencido!
Mesmo à beira da morte
Quero erguer o braço forte
Da razão de ter vivido.

Voz de amor por quanto louvo
Caia-me o coração exangue,
Mas sem traição do meu sangue
Que é a voz do meu povo.


Afonso Duarte

História de amor da princesa Ozoro e do húngaro Ladislau Magyar





Primeiro momento

Meu pai chamou e disse:
mulher, chegou a hora, eis o senhor da tua vida
aquele que te fará árvore

Apressa-te Ozoro,
parte as pulseiras e acende o fogo.
Acende o fogo principal, o fogo do fogo, aquele que arde
noite e sal.
Prepara as panelas e a esteira
e o frasco dos perfumes mais secretos
Este homem pagou mais bois, tecidos e enxadas do que
aqueles que eu pedi
este homem atravessou o mar
não ouvi falar do clã a que pertence
o homem atravessou o mar e é da cor do espírito

Nossa vida é a chama do lugar
Que se consome enquanto ilumina a noite

Voz de Ozoro:

Tate tate
meus todos parentes de sangue
os do lado do arco
os do lado do cesto
tate tate
porque me acordas para um homem para a vida
se ainda estou possessa de um espírito único
aquele que não se deu a conhecer
meu bracelete entrançado
não se quebrou e é feito das fibras da minha própria essência
cordão umbilical
a parte da mãe
meu bracelete entrançado ainda não se quebrou
Tate tate
ouve a voz de meu pequeno arco esticado
as canções de rapariga
minha dança que curva a noite
ainda não chegou meu tempo de mulher
o tempo que chegou
é lento como um sangue
que regula agora as luas
para mim
de vinte oito em vinte e oito dias

Segundo momento

Voz de Magyar:

Senhor:
Atravessei o mar de dentro e numa pequena barcaça
desci de Vardar para Salônica, durante a batalha das
sombras. De todas as montanhas, a que conheço expõe um
ventre de neve permanente e uma pele gretada pelo frio.
Nasci perto do Tisza Negro, junto à nascente.
Naveguei um oceano inteiro no interior de um navio
habitado de fantasmas e outros seres de todas as cores com
as mesmas grilhetas. Como eles mastiguei devagarinho a
condição humana e provei o sangue o suor e as lágrimas do
desespero. São amargos, senhor, são amargos e nem sempre
servem a condição maior da nossa sede. Vivi durante
muitos meses o sono gelado da solidão.
Senhor
Eu trago um pouco de vinho sonolento do interior da
terra e a estratégia de uma partida húngara, levo o bispo por
um caminho direto até à casa do rei, senhor. Por isso aqui
estou e me apresento, meu nome igual ao nome de meu
povo, Magyar, os das viagens, Magyar, o dos ciganos.
Senhor
Eu trouxe meus cavalos e vos ofereço minha ciência de
trigo, em troca peço guias dos caminhos novos, alimento
para as caravanas, licença para o Ochilombo e a mão de
Ozoro a mais-que-perfeita.
Senhor, deixai que ela me cure da febre e da dor que trago
da montanha para lá dos Cárpatos.
Senhor, deixai que ela me ensine a ser da terra.

Terceiro momento

Coro das mais velhas:

Fomos nós que preparamos Ozoro, na casa redonda
muitos dias, muitas noites na casa redonda
Fomos nós que lhe untamos, de mel, os seios
na casa redonda
Com perfumes, tacula e fumo velho esculpimos um corpo
na casa redonda
Nosso foi o primeiro grito perante tanta beleza:
Oh, rapariga na palhoça, sentada, ergue-te para que
possamos contemplar-te!

Quarto momento

Vozes das meninas:

Meu nome é terra e por isso me movo lentamente meia
volta, uma volta, volta e meia, para que o tempo me
encontre e se componha.
Sou a companheira favorita de Ozoro do tempo da casa
redonda.

Meu nome é pássaro, como o nome do clã a que
pertenço. Com Ozoro descobri o lago e as quatro faces da
lua, e vi primeiro que todos a cintura de salalé que se
contrai à volta das nossas terras.

Meu nome é flor e sou especialmente preparada para
cuidar do lugar onde a alma repousa. Com Ozoro eu tenho
o cheiro, guardado no frasco de perfumes mais pequeno - o
do mistério.

Meu nome é princípio e eu tenho as mãos do lugar e a
ciência dos tecidos como as mais velhas. Para Ozoro, a princesa,
eu já teci o cinto de pedras apertadas, o mais belo cinto,
de contas vindas do outro lado do tempo da própria casa de
Suku. Para o tecer preparei todos os dias as mãos com preciosos
cremes da montanha. Apertei cada conta no nó fechado
igual ao que fecha a vida em cada recém-nascido. Para Ozoro
eu teci o cinto mais apertado das terras altas.

Meu nome é memória e com as velhas treinei cada fala
- a do caçador nas suas caçadas
- a dos homens no seu trabalho
- o canto das mulheres nas suas lavras
- a das raparigas no seu andar
- o canto da rainha na sua realeza
- o som das nuvens na sua chuva
Na lavra da fala faço meu trabalho, como a casa sem
porta e sem mobília, não tão perfeita como a casa onde o
rei medita, tão redonda como a casa onde Ozoro e as
meninas aprenderam a condição de mulheres.

Coro das meninas:

A casa das mulheres
A casa da meditação
A casa da chuva
A casa das colheitas
A casa das meninas: Terra, Flor, Pássaro, Princípio, Memória

Fala do fazedor de chuva:

Eu que amarrei as nuvens, deixei chover dentro de mim.
Deixei uma nuvem solta, grande e
gorda de chuva rebentar dentro de mim.
Sangro em utima meu pranto de nuvens, choro em
Osande a princesa perfeita, a minha favorita.

Coro dos rapazes:

Desde ontem ouvimos o rugir do leão atrás da paliçada
E as palavras mansas do velho sábio dentro da paliçada
Desde ontem que o leão não se afasta detrás da paliçada
E se ouve o velho que fala com o leão atrás da paliçada
Desde ontem o feiticeiro acende o fogo novo dentro da
paliçada
E se espalham as cinzas do fogo antigo atrás da paliçada
Diante de ti, Ozoro, depositamos a cesta dos frutos e
a nossa esperança

Fala da mãe de Ozoro:

Fui a favorita, antes do tempo me ter comido por
dentro. Semeei de filhos este chão do Bié.
Para ti, Ozoro, encomendei os panos e fiz, eu mesma,
os cestos, as esteiras. Percorri os caminhos da missão.
Encontrei as palavras para perceber a tua nova língua e os
costumes. Com as caravanas aprendi os segredos do mar e
as histórias. Deixo-te a mais antiga
História do pássaro Epanda e do ganso Ondjava

Há muito muito tempo estas duas aves decidiram juntar forças e fazer
o ninho em conjunto. Ondjava era um animal muito limpo e lavava e cuidava
dos seus ovos e da sua parte do ninho. Quando nasceram os filhos,
os pequenos de Epanda estavam sempre muito sujos e feios, enquanto
os de Ondjava deixavam que o sol multiplicasse de brilho as suas penas.
Um dia, Epanda raptou e escondeu os filhos de Ondjava quando esta
se afastara em busca de comida. Ondjava chorou muito e, enquanto recorria
ao juiz para resolver o caso, cuidou dos outros filhos, lavou o ninho todo
e armazenou comida para o cacimbo. Um dia os filhos limpos de Ondjava
voltaram e o juiz determinou pertencerem a esta ave, ninho, filhos e ovos,
porque só merece o lugar quem dele cuida, quem o sabe trabalhar.

Coro:

Só merece o lugar que o sabe trabalhar
Só é dono do lugar aquele que o pode limpar

Fala de Ladislau Magyar, o estrangeiro:

Amada, deixa que prepare o melhor vinho e os
tecidos
e que, por casamento, me inicie
nas falas de uma terra que não conheço
no gosto de um corpo
que principio
Amada, há em mim um fogo limpo
para ofertar
e o que espero é a partilha
para podermos limpar os dois o ninho
para podermos criar os dois o ninho.

Fala dos feiticeiros:

Podemos ver daqui a lua
e dentro da lua a tua sorte, Ozoro
aprenderás a caminhar de novo com as caravanas
e estás condenada às viagens, Ozoro
teus filhos nascerão nos caminhos
serão eles próprios caminhos
da Lunda
do Rio Grande
se o cágado não sobe às árvores, Ozoro
alguém o faz subir!

Última fala de Ozoro antes da viagem:

Amar é como a vida
Amar é como a chama do lugar

que se consome enquanto se ilumina
por dentro da noite.


Ana Paula Tavares (poetisa angolana)
in O lago da lua

Partida & Regresso



E quando tuas veias
Forem sangue-do-sangue-do-povo-das-ilhas
Banhando de suor & sacrifício
Os oceanos do mapa-mundi

E teus olhos cegos de alienação
Forem lâmpadas do progresso
Que se espelham nas ilhas

Ainda mar-evasão
Poema dor & nostalgia
É estrada da partida
Dos sonhos sem cor

E o regresso
È suor & sacrifício
Sangue + cicatriz
Alento nas veias do progresso!


Canabrava
Cabo Verde

Vai, ano velho



Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.


Affonso Romano de Sant'Anna
Brasil

O sonho foge das pálpebras


O sonho foge das pálpebras
A quarta vela exausta
Dentro adormece o mar.

Os amuletos, tuas partes visíveis
Começam dentro do ar
O chamamento da deusa, metamorfose
De uma rapariga em mil e uma portas
Que o céu tilintado abre ao javali

Agora só nos resta para escaparmos
À noite o claro susto das constelações
A falésia do amor
Onde nasce e tomba
E ressuscita
O séquito das mãos
A garça e o falcão.


Gil de Carvalho

Bocas roxas de vinho,


Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas


Ricardo Reis

Beija-me




Beija-me
Sobre a areia fria, úmida do mar,
No sal da espuma alada
Que afaga de onda em onda os nossos pés,
No cintilar das estrelas álgidas, solitárias na noite,
Sobre os ossos lisos de corpos esfacelados e sangrentos.
Ajuda-me a lutar,
Envolve-me em teus braços
E deixa-me chorar a minha solidão
E a tua.


Teresa Balté

12.30.2009

Eu



Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou a unidade infinita
Eu sou um deus com princípio
Eu sou poeta!

Eu tenho raiva de ter nascido eu,
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.

Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos.
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo o mundo.


Ismael Nery
Brasil

Se em Nós a Solidão Viver Sozinha



Se em nós a solidão viver sozinha,
sem que nada em nós próprios a perturbe,
cada figura passará rainha
na antiguidade súbita da urbe.

Um acento de pena irá na linha
vincar a eternidade de figura
a um rosto que quase só caminha
para dentro de o vermos pela pura

substância em si que vive a solidão
dentro de nós. E sendo nós só margem
do seu reino de ver por onde vão

as figuras passando na paisagem
de um antigo fulgor de coração
aonde passam desde sempre. E agem.

Fernando Echevarría (poeta timorense)


A Teia



Dormimos versos cercados de cal
para onde quer mesmo que nos leve a malha
quando a gente se transforma em cristal
encravado na bota de um canalha.

Ó desventurados da conjuntura
pirilampos sem luz, sem prevenção
retidos na teia cor-de-toga impura
porque a mão vos furtou para a boca o pão!

Encoleirou-se o corvo com o diadema
esquecido pelo ex-compadre burguês:
não houve toga nem sequer algema
e, de súbito, a teia se desfez!

Porém, sem darmos por ela, o fermento
destas lágrimas de terebentina
entrança já tatuagens de alento
para uma teia mais pura e cristalina.


Julius Kazembe
Moçambique

12.29.2009

Amargos como os frutos





"Dizes-me coisas tão amargas como os frutos..."
Kwanyama


Amado, porque voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

onde deixaste a tua voz
macia de capim e veludo
semeada de estrelas

Amado, meu amado
o que regressou de ti
é tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas
como os frutos

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)


Ana Paula Tavares (poetisa angolana)

12.28.2009

O sapo



O sapo
sabe
saltar na lagoa

o sapo
sabe
que não voa

o sapo
chape
chape


David Mestre (poeta angolano)

O Menino brincando



Ó meu Jesus adorado,
Fecha os teus olhos divinos
Num soninho descansado;
Que a não sermos tu e eu
Toda a gente do povoado,
Desde os velhos aos menino,
Há muito tempo que adormeceu.

E o Menino Jesus não se dormia...

Dorme, dorme, dorme agora
(Cantava a Virgem Maria)
Que mal assomou a aurora,
Sentei-me junto ao tear
E por todo o dia fora,
Até que já se não via,
Não deixei de trabalhar!

E o Menino Jesus não se dormia...

Tornava Nossa Senhora,
Numa voz mais consumida:
Dorme, dorme, dorme agora
E que eu descanse também,
Porque mesmo adormecida
Vela sempre, a toda a hora,
No meu peito, o amor de mãe.

E o Menino Jesus não se dormia...

Numa voz mais fatigada,
Tornava a Virgem Maria:
Dorme pombinha nevada,
Dorme, dorme, dorme bem...
Vê que está quase apagada
A frouxa luz da bugia,
Do pouco azeite que tem.

E o Menino Jesus não se dormia...

Rogava Nossa Senhora:
Modera a tua alegria...
Não deites a roupa fora
Do teu leito pequenino...
Não rias mais. Dorme agora
E brincarás todo o dia...
Dorme, dorme, meu menino.

E o Menino Jesus não se dormia...
Mais triste, mais abatida,
Pediu a Virgem Maria:
Tem pena da minha vida,
Que se a quero é para ti...
Vida aflita e dolorida!
Só por ti a viveria
Tão longe de onde nasci!...

E o Menino Jesus não se dormia...

E a voz da Virgem volveu:
Repara no meu olhar,
Vê como ele entristeceu...
Dorme, dorme, dorme bem,
Ó alvo lírio do céu!
Olha que estou a chorar
- Tem pena da tua mãe!

Nosso Senhor, então, adormeceu...


Augusto Gil

Dança do Ventre



Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de eléctricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demónio sangrento da luxúria!


Cruz e Sousa
Brasil

12.27.2009

Natal das ilhas

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À Maria e ao Manuel Pinheirinho, primos-irmãos

Natal das Ilhas. Aonde
O prato do trigo novo,
A camélia imaculada,
O gosto no pão do povo?
Olho, já não vejo nada.
Chamo, ninguém me responde.

Natal das Ilhas. Serão
Ilhas de gente sem telha,
Jesus nascido no chão
Sobre alguma colcha velha?

Burra de cigano às palhas,
Vaca com língua de pneu,
Presépio girando em calhas
Como o eléctrico, tu e eu.

Natal das Ilhas. Já brilha
Nas ondas do mar de inverno
O menino bem lembrado,
Que trouxe da sua ilha
O gosto do peixe eterno
Em perdão do seu passado.


Vitorino Nemésio

Depois de mim




Um dia, sei-o bem;
os campos ficarão eternamente floridos;
e a chaga que me inquieta,
deixara de sangrar em todos os peitos.
Os homens já não estarão curvados sobre si mesmo.
E o empregado de mesa não servira mais com
o seu ar de humildade.

A mulher dos mangos, o rapazinho do jornal,
o estudante pobre com medo de dizer:
» EU QUERO »,

Os homens estivas,
os vendedores de vinho de palma,
a linda mãe solteira,
todos deixarão de sorrir com humildade!

Humildade ficara para sempre nos dicionários
como um esqueleto num Museu Arqueológico!

Eu próprio nunca farei baixar as pálpebras,
e deixarei que o sol me inunde bem os olhos.
Um dia. Ah! como sinto!...
Uma onda amor invadira tudo e todos!

E será uma época diferente e todas as épocas,
porque ainda não foram inventadas palavras para dizê-las!

Simplesmente,
neste primeiro dia da nossa criação, já eu terei partido
a minha carne estará bem funda demais
para sentir o beliscão dessa alegria.

E os olhos cheios de saudades sem fim.


Armando Salvaterra
Guiné

12.25.2009

Boas festas, boas festas



Boas festas, boas festas
Aqui haja neste dia
Que manda o Menino Deus
Filho da Virgem Maria

Boas festas, santas festas
Boas festas de doçura
Que manda o Jesus menino
No raminho de salsa pura.


Aquilino Ribeiro

O Milagre da Noite de Natal


(em 19.12.59)

A Virgem Mãe, depois de reparar
que ninguém se encontrava já na ermida,
desceu devagarinho do altar,
- como temendo ser surpreendida -

e foi logo espreitar, pé ante pé,
à janela que deita para a rua:
no Céu, brilhava clara luz da Lua.
Em seu altar sorria S. José...

Nem viv’alma. E então Nossa Senhora,
segura já de que ninguém a via,
pôs em acção a ideia redentora
que tivera naquele santo dia.

Foi buscar um cestinho de costura
que ocultara no vão de uma janela.
O cesto era pertença da capela:
- não se rompesse a veste ao padre-cura...

Cortou em largas tira o seu manto,
enfiou uma linha numa agulha
e, depois, foi sentar-se para um canto,
mas sem fazer a mais ligeira bulha.

Quem a visse coser assim tão bem,
ora enfiando ora puxando alinha,
di-la-ia a melhor costureirinha,
mas nunca, certamente, a Virgem Mãe!

O S. José sorria sempre muito,
olhando-a com sincera devoção:
é que ele bem sabia o meigo intuito
que obrigava a senhora a tal serão.

Os outros Santos, todos num cochicho,
não perdiam de vista o altar-mor.
O Santo António, para ver melhor,
até ia caindo do seu nicho...

Houve uma Santa - a gentileza manda
sobre o seu nome conservar sigilo -
que até ficou de resplendor à banda,
tais voltas deu para espreitar aquilo.

A Senhora entretanto costurava,
presa dum sonho que se não descreve,
alheia ao tempo que fugia breve
e ao pasmo que em redor se condensava.

Esteve assim, cosendo, horas a fio,
à frouxa luz de trémula candeia.
De entretida, nem dava pelo frio...
E, contudo, nevava sobre a aldeia!

Fez bibes, camisinhas, tudo quanto
pode servir de abafo a um petiz.
Cada vez refulgia mais
o seu olhar imaculado e santo.




E as peças que a Senhora ia acabando
os anjos dum retábulo da igreja
levavam-nas depois num voo brando
- voo de pomba que no Céu adeja -

às criancinhas que andam pelo mundo
sem roupa, sem abrigo e sem família...
A Virgem continuava na vigília.
Havia em roda um soluçar profundo.

Por fim, adormeceu, ou de cansaço
ou por doce milagre de Jesus.
- Um enxoval inteiro no regaço
e na fronte uma auréola de luz!

E de manhã na missa do Natal,
quando o prior saiu da sacristia,
foi empontar a Virgem que dormia
- tendo nas mãos a agulha e o dedal.


Adolfo Simões Muller

Perfil



De passagem,
como a véspera imprecisa
do poema,
principia em mim
a planície agreste
da solidão dos outros.
E a não ser
o silêncio poente
dos meus olhos,
tudo o resto me diz
que sou um pássaro
a voar, inconsequentemente,
no sentido das palavras.


Graça Pires

12.24.2009

Coro de Natal



Quem nos garante que estamos vivos
que sequer somos o que fingimos
se atravessamos ruas e praça
sempre com ‘spadas entre as espáduas
e com serpentes em torno aos braços
e com cilícios em vez de cílios
e com os sonhos desarrumados
pelos sorrisos e compromissos
desta comédia de celebrar-te
assegurando que não existes

Quem nos garantes que estamos vivos
Ou não seremos somente o lixo
da grande roda que nos esmaga
da grande garra que nos agarra
do grande grito que nem gritado
por todos juntos será ouvido
Quem nos garante se neste espaço
que nos separa só o sigilo
preenche as pausas a grande pausa
de recearmos que tu existas

Quem nos garante que estamos vivos
se atravessando ruas e rios
portas e portos pontes e praças
só deparamos com os esgares
que já tiveram as nossas faces
à mesma hora nos mesmos sítios
Quem nos garante que sob as lajes
de outras cidades de outros jazigos
neste momento ressuscitados
não afirmamos que Tu existes

David Mourão-Ferreira

Na Tal



Na tal habitação volto a falar-te
Na tal que já eu-próprio não conheço
Na tal que mais que tálamo era berço
Na tal em que de noite nunca é tarde

Na tal de que por fim ninguém se evade
Na tal a que sei bem que não regresso
Na tal que umbilical cabe num verso
Na tal sem universo que a iguale

Na tal habitação te vou falando
Na tal como quem joga às escondidas
Na tal a ver se tu me dizes qual

Na tal de que eu herdei só este canto
Na tal que para sempre está perdida
Na tal em que o natal era Natal


David Mourão-Ferreira

...quando aconteço me dando em poemas



...quando aconteço me dando em poemas
julgo-me adúltero já doutros poetas


as mesmas palavras com que me venço
são aquelas que a qualquer se rendem

e o ritmo em que me sego e me colho
vem já do berço da comum sementeira

sei lá quantos outros em mim respiram
quantos eus por aí germinam

e já nem sequer me intimidam
nos versos antes de mim mesmo devassados
outras cancelas já velhas de inspiração

quero-me até cada vez mais comungado
na subtil reconquista de nós próprios

só me repugna e me atormenta
a íntima heresia involuntária

de me ver traído crucificado
num milímetro que seja
de cumplicidade memorial


Rui Nogar
Moçambique

12.23.2009

Natal



Nas vidraças o gelo faz desenhos,
ziguezagues e traços de cristal
Dentro de casa há luzes coloridas
E o conforto de uma árvore de Natal.

Na rádio ouvem-se canções doces, ternurentas,
Uma música que nos é familiar
Sons de sininhos e campainhas
E na lareira um fogo a crepitar.


David Mourão-Ferreira

O Natal



Este Natal de Jesus
Há dois séculos que o fez,
Com barro mole, um oleiro.
Verdade não a traduz;
Mas, por ser tão português
- É para nós verdadeiro...

Do grande átrio, todo em ruínas,
Dum palácio pombalino,
Em cuja frente se vê
O nobre escudo das quinas,
Estão, a um canto, o Menino
E a Senhora e São José.

São José tem na cabeça
Um largo chapéu braguês
Derrubado para os olhos;
E a Virgem Maria, essa,
Tem chinelinhas nos pés
E veste saia de folhos...

O Menino está deitado,
Entre as radiações dum halo,
Num loiro feixe de palha;
E uma vaquinha, ao seu lado,
Acerca-se a bafejá-lo
E mornamente o agasalha.

Para o filhinho tão lindo,
Numa expressão em que luz
O seu enlevo de mãe,
A Senhora está sorrindo...
Na boquinha de Jesus
Paira um sorriso também...

Com as mãos no coração,
Com o olhar cristalino
Em que há lágrimas e sóis,
São José, cheio de unção,
Fita a Mãe, mira o Menino
- E sorri-se para os dois...

Um anjo de asas nevadas,
De formas finas e puras,
Este dístico descerra
Das suas mãos delicadas:
Glória a Deus nas alturas
E paz aos homens na terra!

Vêm, pela estrada fora,
Três monarcas em três bravos,
Infatigáveis corcéis.
É que está chegada a hora
Dos mais humildes escravos
Se equipararem aos reis...
Num duo desconcertante,
Dois cegos vão a tanger,
Nos violões, com gesto lento.
É que chegou o instante
Da pobreza merecer
O prémio do sofrimento...

Um coxo de pés cambados
Atira as muletas fora
E a correr, mal pisa o chão.
É que está chegada a hora
Dos tristes, dos desgraçados
- Sentirem consolação...

Toca adufe uma pastora
Para mais outras bailarem
Entre ovelhas e lebréus.
É que está chegada a hora
Daquelas que muito amarem
Serem dilectas de Deus...

Um petiz faz palhaçadas
Com elástico vigor,
Alegria irreprimida,
E, pelas calças rachadas
Ao longo do sim-senhor,
Vê-se-lhe a fralda saída...

É que estão próximas já,
É que já estão vizinhas
As tardinhas comoventes
Em que às turbas pregará
O amigo das criancinhas
Dos corações inocentes...

Augusto Gil

Farpas



Tanta farpa cravei por acidente
no meu próprio flanco.
As farpas oscilam a cada passo meu,
lacerando sempre um pouco mais
os rasgões que já trago na carne.
Toma para ti - ò touro divino,
verdadeiro destinatário delas! -
algumas dessas farpas.
Que todas sobre mim são muito peso,
muita dor,
muito sangue empastando sobre a pele,
muita mosca cevando-se no sangue.


A. M. Pires Cabral

12.22.2009

Certeza

Cai chuva. É noite.




Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.
Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
Final do inútil bem.

Que, se quer, e, se veio, se desconhece
Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
Na noite agora fria.


Fernando Pessoa

12.21.2009

Soneto de Natal




Um homem, - era aquela noite amiga,
Noite Cristã, berço do Nazareno -
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite Cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
Mudaria o Natal ou mudei eu?


Machado de Assis (poeta brasileiro)

Nada / Natal



Este lume que já nos não aquece
Este medo do nada que nos ocntem
Esta névoa de nata em vez de neve
E a nossa vida cada vez mais ontem

Este Sol que não rompe sob os cactos
Estes mortos de novo hoje tão perto
É no búzio dos crânios exumados
que melhor nós ouvimos o deserto

Estas folhas de plátano Estas mãos
que o fogo vai torcendo lentamente
Esta cinza no fim de uma oração
Este sino Este céu sobrevivente

Mas soa a meia-noite E logo o nada
deixa de estar em tudo como estava


David Mourão-Ferreira

12.20.2009

Natal - A palavra mais bela



Fui ver ao dicionário dos sinónimos
A palavra mais bela, sem igual,
Perfeita como a nave dos Jerónimos
E o dicionário disse-me: NATAL.

Perguntei aos poetas que releio
Gabbriela, Régio, Göthe, Poe, Quental,
Lorca, Olegário... E a resposta veio:
Christmas… Nöel… Natividade… NATAL.

Interroguei o firmamento todo
Cobra, formiga, pássaro, chacal!
O aço em chispas, o pipe-line, o lodo!
E a voz das coisas respondeu: NATAL!

Pedi ao vento e trouxe-me dispersos
Riscos de luz, fragmentos de papel
Cânticos, sinos, lágrimas e versos
Um N, um A, um T, um A, um L...

Perguntei a mim próprio e fiquei mudo
Qual a mais bela das palavras, qual?
Para que perguntar, se tudo, tudo,
Diz: NATAL, diz NATAL, diz NATAL!

Adolfo Simões Müller

Natal



Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.

Miguel Torga

12.19.2009

Recordo ainda...



Recordo ainda...
E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa.
Que deixavam, sempre,de lembrança,
algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de desesperança...
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta.
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui...
Mas,aí,
Embora idade e senso eu aparente,
não vos iluda o velho que aqui vai:
eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino...
Acreditai!
Que envelheceu um dia de repente".

Mário Quintana (poeta brasileiro)


Os Dois Horizontes



Dois horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro,—
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.

Machado de Assis (poeta brasileiro)

Beijo Eterno



Quero um beijo sem fim,
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue.
Acalma-o com teu beijo,
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!
Fora, repouse em paz
Dormindo em calmo sono a calma natureza,
Ou se debata, das tormentas presa,
Beija inda mais!
E, enquanto o brando calor
Sinto em meu peito de teu seio,
Nossas bocas febris se unam com o mesmo anseio,
Com o mesmo ardente amor!...
Diz tua boca: "Vem!"
Inda mais! diz a minha, a soluçar... Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
"Morde também!"
Ai! morde! que doce é a dor
Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! morde mais!
que eu morra de ventura,
Morto por teu amor!

Castro Alves (poeta brasileiro)

Ao Menino Deus Nascido


Não choreis, belo Menino,
Se de amante vos prezais,
Porque amor que chora mais
É sempre amor menos fino:
Limpai o rosto divino,
A quem a minha alma adora,
Que se Vossa Mãe vos chora
Meu Deus, com tantos rigores,
É porque, ao nascer das flores,
Costuma chorar a Aurora.


Jerónimo Baía (poeta brasileiro)

Noite de Natal



Ai que rico bailarico
Ai que rico lumaréu
Ai que bailarico rico
Bailam as estrelas no Céu!

Bailem todas - giroflé...
Giroflé, giroflá...
Quem está no meio - olaré!
Mais bonito é que não há.

Meia noite... Noite meia...
Batem à porta: triz! Truz!
- Fui à missa... Venho à ceia
Viva o Menino Jesus!


Adolfo Simões Muller

Tratem-me com a massa





"Amparai-me com perfumes, confortai-me com maçãs
que estou ferida de amor..."

Cântico dos Cânticos


Tratem-me com a massa
de que são feitos os óleos
p'ra que descanse, oh mães

Tragam as vossas mãos, oh mães,
untadas de esquecimento

E deixem que elas deslizem
pelo corpo, devagar

Dói muito, oh mães

É de mim que vem o grito.

Aspirei o cheiro da canela
e não morri, oh mães.

Escorreu-me pelos lábios o sangue do mirangolo
e não morri, oh mães.
De lábios gretados não morri

Encostei à casca rugosa do baobabe
a fina pele do meu peito
dessas feridas fundas não morri, oh mães.

Venham, oh mães, amparar-me nesta hora
Morro porque estou ferida de amor.


Ana Paula Tavares (poetisa angolana)

Desperta-me de noite



Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas

A trégua
a entrega
o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo

E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

Estou sentindo o martírio



"Estou sentindo o martírio de uma importuna sensualidade.
De madrugada acordo cheia de frutos.
Quem virá colher os frutos de minha vida?"


Clarice Lispector (poetisa brasileira)

Tantas formas revestes...



Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor,
e quase te acredito.

Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que ouve apenas o eco
Peco

Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio dum vinho herético e sagrado

Miguel Torga

O seu santo nome...


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Carlos Drummond Andrade (poeta brasileiro)



12.18.2009

Mulher andando nua pela casa



Mulher andando nua pela casa
envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante.
É um andar vestida de nudez,
inocência de irmã e copo d’água.

O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
dando este nome à vida: castidade.

Pêlos que fascinavam não perturbam.
Seios, nádegas (tácito armistício)
repousam de guerra. Também eu repouso.

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

O negro pão do exílio




Mas com quê? De que maneira
Se haviam de sustentar
Naquela terra estrangeira?...

A Virgem tinha na mão
(E foi só esse o jantar...)
Um resto de duro pão!

Pão tão rijo, pão tão duro
Como um duro fariseu,
E tão negro, tão escuro

Como carvão, como breu...
Mas choraram ao comê-lo,
Logo o pão amoleceu...

Acordou aquela hora
O Menino; - e só de vê-lo,
Ri São José, já não chora;

Nem a Virgem, com receio
De que o seu pranto divino
Lhe seque o leite do seio

- E tenha fome o Menino...

Augusto Gil

12.17.2009

Beleza e bondade


(De Safo)

Quando ávida contemple a formosura,
Tão breve é meu prazer que foge co ela:
Mas bondade e lisura,
Mas a inocência, oh! essa é sempre bela.


Almeida Garrett

Poemeto erótico



Teu corpo claro e perfeito,

- Teu corpo de maravilha,

Quero possuí­-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo, branco e macio,
é como um véu de noivado...

Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como a tarde os horizontes...

E puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...

Volúpia da água e da chama...

A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira (poeta brasileiro)


12.16.2009

Diferença



Aquilo que é secreto
à tua beira
e longe de ti se torna
tão corrente

Aquilo que é vulgar
longe de ti
mas se estás perto
se torna tão diferente

Aquilo que é mistério
indecifrável

se te aproximas até à minha
cama

E que se torna
raivosamente instável
se por acaso não dizes que me amas

Aquilo que é segredo
se o não escutas
e a tua beira fica
desvairado

Maria Teresa Horta

Inconfesso Desejo


Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

Presépio



Entre as mais doces tradições do povo,
que encerram claro germe de beleza,
uma, por sua graça e natureza,
mais que nenhuma, intimamente louvo.

É o presépio. Sempre me comovo,
quando vejo na sua singeleza:
Fica a chama da crença mais acesa,
- Lembra até que Jesus nasceu de novo!

O Menino a sorrir na manjedoura,
depois muitos pastores, um burrinho,
(tudo de barro!), e ao pé Nossa Senhora

E presa lá no Céu por um cordel,
ensinando aos Reis Magos o caminho,
uma estrela doirada de papel!...

Adolfo Simões Muller

12.15.2009

Natal de 1971




Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
Nesta guerra de sangue?
Natal de liberdade
Num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de amor? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
E torturados são
Na crença de que os homens
Devem estender-se a mão?


Jorge de Sena