8.31.2009

Amo os teus defeitos



Amo os teus defeitos, e tantos
eram, as tuas faltas para comigo
e as minhas; essa ênfase
de rechaçar por timidez: solidão
de fazer trepadeiras, agasalhos
para velhos, depois para netos;
indulgência de plantar e ver
o crescimento da oliveira do paraíso,
carregada de flores persistentemente
caducas; essa autoridade, irremediável
desafio; e a astúcia
de termos ambos quase a minha cara.


António Osório

8.30.2009

Nas ondas caminhei com pés de arado


Nas ondas caminhei com pés de arado
ao largo muito ao largo me perdi.
Habitei a luz pura e sem degredo
vi o polvo e a moreia disputando
o necessário acordo de viver
vi as cores dançando sobre os peixes
como dardos na avidez do meu olhar.
por entre os dedos muito abertos
muito lisos passou não sei que sol
ou que fantasma


Nuno Higino

Sol Posto


Sol posto. O sino ao longe dá Trindades
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes... E saudades
Nos atalhos parecem dormitando...

É esta a hora em que a suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d'amargura...

É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p'lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando...

Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!...

Florbela Espanca

Epitáfio



Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.


Vinicius de Moraes
Brasil

8.29.2009

Galgo num olhar o verde que se estende



galgo num olhar o verde que se estende
lentamente
e veloz recuo no tempo
galgando os campos da minha infância

sorvo o doce profundo da natureza
imanente
no hálito fresco e húmido da manhã

gotas de orvalho cintilam
como lágrimas
num rosto de inefável beleza

a paisagem palpita
de luz, cores, odores, sons
- em tropel as sensações

fecho os olhos - a volúpia antiga:
tudo retenho
pintado
numa tela de retina

algo se funde em mim


Teresa Souto

a sede sublimou-se nas cataratas de vento



a sede sublimou-se nas cataratas de vento
quem pagará a carne que Botero
roubou a Egon Shiele
toca-me
e verás a argila moldar-se pelas mãos de barro cozido
um braço é um músculo e osso
e é tenaz de ferro fundido
quando é preciso
segura os pulsos por onde as
mãos
escorrem e ficam penduradas
como gotas
às vezes nos bolsos às vezes mas caras
a moldar as expressões dos passos que se afastam
não é fácil desenhar um sorriso
quando na garganta se sublimou a sede e os
olhos são de vidro soprados e
seco ao sol
as imagens reflectem-se e não se demoram
os passos levam os rostos em volta
a sede sublimada
e nos desenhos de Egon Shiele
a fome de mais tinta e de mais cor


Tiago Araújo

A roupa envolve-nos



A roupa envolve-nos
a paragem do mar cresce contigo
a língua e o sentido tudo anda
tão ocupado tão cansado e destruído
que a roupa em
torno morre como um foco de ruído

O movimento cerca esta mudez
o mar desidratado é o abismo
onde revives
Viste os vales instáveis do mar
mas para que é perguntar senão que se fez de ti
O fogo sob as vozes que não ouves
A língua vive ainda?

Inscrevo na memória tumefacta
mais uma imagem
Esses corpos nascem
O que posso dizer para cobri-los?
Ouves? Está comigo
a mortalidade da tua vida

Como falar contigo? Mas o som
produzido era tanto
que as cordas se formavam com a sua saída
retomavam a forma destruída
enquanto
tudo o que te dizia dividia
um som tempestuoso

Na ocasião da queda
desses algum
olha as áreas correspondentes no mar
volta transforma-se
é um sinal de
contradição
e sob a chuva contínua de relâmpagos revive

Porém o som inibe-te prossegues
sem segurança o canto a turva cítara
vence-te não o canto repetido
Essas cordas do peito já distensas

submetem-se ao silêncio poderias
escolhê-las porém sempre repetes
os nomes desses corpos a mudez
intimida-te assim a poesia

nasce com o rumor dos próprios corpos
com o bater dos nomes entre os ombros
tão dóceis mar de músculos

mudos
o coração do corpo
repetindo os nomes turvos

Como é possível termos esquecido a linguagem?
Comparámos os corpos Se os descrevo
agora que deixámos de falar
esqueço a igualdade e nela cessa
a possibilidade de falar

É um erro a cidade alguma vez a
cantaste?
Mas já não é possível a verdade é que
definitivamente nela morres
Por isso escolherás o teu estilo
de novo por palavras errarás

Na praia exterminada não pudemos
cantar a liberdade
sobre o teu corpo correm turvas asas
de entre as pedras
levantas a cabeça enquanto cais

Depois a roupa gera e espalha a escuridão
cada corpo isolado se transforma
sob as asas que
o cobrem

Desencontramo-nos
a terra recomeça a deter-te
preciso de dizer
esse teu nome
Mas não ouças a minha fala transformada


Gastão Cruz

8.28.2009

O Verão



Sou o verão ardente
Que, vivo e resplendente,
Acaba de nascer;
Nas matas abrasadas,
O fogo das queimadas
Começa a se acender.
Tudo de luz se cobre…
Dou alegria ao pobre;
Na roça a plantação
Expande-se, viceja,
Com a vinda benfazeja
Do provido Verão.
Sou o Verão fecundo!
Nasce no céu profundo
Mais rútilo o arrebol…
A vida se levanta…
A Natureza canta…
Sou a estação do Sol!


Olavo Bilac
Brasil

não é sobre a solidão,


não é sobre a solidão,
pouco me importa quem me
desviou palavra, é sobre
a tua ausência no lugar
íngreme da minha pele, por isso
cairei implume telhado abaixo
debulhada no coração


Valter Hugo Mãe

8.27.2009

Antes que o verão chegue


antes que o verão chegue
e as longas tardes
se espalhem pelo coração
e te prendam ao desgaste habitual
toca uma palavra
para que permaneça
na minha boca
onde mais ninguém
possa ficar confundido.
Uma apenas.

E vê como pesa menos sobre o silêncio
A sombra que vais mover.


Vasco Ferreira Campos

8.26.2009

S (esse)



Direi de meu tempo que havia um S
havia uma sombra e um silêncio
havia um S de sigla e de suspeita
com suas seitas e seus sicários.

Não sei se signo não sei se sina
não sei se simplesmente sujo.
Ou só servil. Ou só sevícia.

Havia um S de Saturno
havia um susto
havia um S de soturno
sobre um S de sol.

De meu tempo direi
que havia um S
de sepulcro.

Sentinela. Sentinelas.

Ou talvez selva. Talvez serpente.
S de sebo e de sebenta: seco seco.

E também senão. E também senil.

De meu tempo direi
que havia um S
sem sentido.

E também Setembro. E também solstício.
Saga e safra.
Ou talvez semente. Ou talvez segredo.

Havia um S de sal e sílex
havia um silvo
Havia uma sílaba ciciada.

E também o sonho: entre suar e ser.
(Como um soluço como um soluço.)

De meu tempo direi
que havia um S
de sol e som.
Havia Setembro e um assobio
contra um S de sombra e de silêncio.


Manuel Alegre

Búzio


sei que nunca viste o oceano,
sei que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte.
mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.
por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.


Vasco Gato

Violada


Possuíram-te nas ervas,
Deitada ao comprido
Ou lívida a pé:
Do estupro conservas
O sangue e o gemido
Na morte da fé.

Chegaste a cavalo
Trémula de espanto:
Esperavas levá-lo
Com modos de amor:
O fátum, num canto,
Violento ceifou-te
O púbis em flor:
Dou-te
O acalanto
Mas não há palavras
Para tal horror!

Vem ainda em cós, mulher,
Limpa as tuas lágrimas no meu lenço:
Nem pela dor sequer
Eu te pertenço.

O cavalo fugiu,
Deixou-te em fogo a fralda:
Que malfeliz Roldão
Para tal Alda!
Ao frio, ao frio,
Tinta de ti é a água e sangue o chão.

Ponta Delgada a arder
Do próprio pejo, quis
Em verde converter
O incêndio do teu púbis.

Mulher, não me dês guerra,
Oh trágica enganada:
Tu és a minha terra
Na carne devastada
Como a Ilha queimada.

Vitorino Nemésio

Epígrafe



Murmúrio de água na clepsidra gotejante
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...


Eugénio de Castro

Desintegração



Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer...
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação!

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos tremem ainda ao contacto
imaterial, sobre-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo...

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita. Tenho o coração cheio de coisas para dizer...
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto...


Abgar Renault
Brasil

8.25.2009

Poema



Negue-se o mundo a me dizer: sim!
Negue-se o ar da serra aos meus pulmões!
Fechem-se as janelas porque vim
interromper os solheiros e os pregões!
Neguem-me o passaporte
pra o estrangeiro!
Encontre-se sem norte
e sem dinheiro
(e desprevenidamente des-emotiva!)
frente às rodas paralelas
duma qualquer locomotiva,
ou entre elas,
ou melhor: debaixo delas!
— Por tudo encolherei os ombros
que, em suma, dizem crentes e descrentes
a vida é feita de rombos e de tombos,
doença, hostilidade e guinchos de serpentes.

Mas tu — (Homem! Garra!
Sucesso! ou Vento! ou Amarra!
Vício alegre! ou Labirinto!
Bebedeira de absinto
Filhos!
E Deus neles!)
— não me negues o tom simples
e às vezes reles
da tua voz pura-impura
com que seques
a minha vil e vã desenvoltura.


Fernanda Botelho

Agora entre eu e o Monte Verde



Agora entre eu e o Monte Verde
Só as nuvens que passam,
Os momentos de plenitude
São quando deixamos de ser nós
Para sermos nós

Vasco Martins
Cabo Verde

Nunca soube lançar o pião



Nunca soube lançar o pião
como os rapazes no terreiro,
entre os contentores: aprendizes
de ladrões, de proxenetas,

arrumadores. Nunca soube
lançar o pião. Nem puxar-lhe
o cordel entre os dedos
ou içá-lo, rodopiante, na palma

da mão, acima do solo
conspurcado e mudo. Lancei
a minha vida, os meus
anseios. E foi tudo.


Victor Oliveira Mateus

8.24.2009

Sem Tempo


Me falta tempo
para ler todos os livros que quero

Me falta tempo para passeios e praias
e as locadoras com seus filmes
Felinis que não vi
e os museus que me esperam
me falta tempo

Me falta tempo para amar os flertes
e aprofundar as amizades de coquetéis
me falta tempo para arrumar o armário
jogar coisas fora
passar a limpo a caderneta de telefone
redecorar o quarto

Me falta tempo para o orfanato
e ajudar o meu vizinho a pendurar o quadro na parede

Me falta tempo para aprender japonês
pintar em tecido
tocar piano
tecer meus planos

Me falta tempo para as aquarelas que sonho
preciso anotar meus sonhos

Mas
me falta tempo

Tempo para os amigos antigos que já me esqueceram
tempo para as músicas e cds
tempo para o estrangeiro, ilhas e cantões a conhecer

Me falta tempo para os poemas que a poesia me exige
e gravar os programas de TV
no entanto,
quantas vezes não tenho nada,
absolutamente nada
para fazer.


Ângela Carneiro
Brasil

8.23.2009

O Pranto do Trigal



Veio do campo! Eu julguei que era o vento.
Até que ouvi claramente.
Era um soluço, um ai de sofrimento,
De alguém que chorava perdidamente.

Perguntei entre curiosa e surpresa:
Quem padece de tanto mal?
Que chora assim de tristeza?
Sou eu! Eu o trigal
Bem hajas, tu que me lembras a camponesa.

Eu choro atormentado de saudade e solidão
Aqueles que me cuidavam
Aqueles que me alegravam
Diz-me: Onde estão? Onde estão?

Onde estão os almocreves
Valentes abnegados?
Onde estão as parelhas?
Onde estão os arados?

Onde está o semeador
De mão ágil e fagueira?
Que bem me deitava à terra!
E chegada a primavera
Onde se esconde a mondadeira?

Como ela era bonita
Nos seus trajes enfeitados
Mangueiras com laços de fita
Avental e punhos bordados.

Se eu estava enfraquecido
Aconchegava-me o pé
De consolo enternecido
Cheguei a chorar até.

E a minha gentil ceifeira
Papoila, mulher, rosa brava
Mimosa ainda que trigueira
Como ela me enfeitiçava!

Na boca um riso, uma cantiga
Por graça eu curvava a pragana
Enleando-lhe uma espiga
Nos seus canudos de cana.

Onde está o ceifeiro possante
Desassombradamente ágil
Ajudando discreto galante
Uma ceifeira mais frágil.

Ao grito: Pessoal atem o pão!
Ai! Como eu era feliz
Mesmo tombado no chão
Separado da raiz.

Que folga eu dormia, já releiro!
Nem me incomodava a torreira
Até que o almocreve e o moleiro
Vinham buscar-me para a eira.

Vaidoso lá ia eu transportado
Em artísticas carradas piramidais
Para na eira ser alinhado
Muito juntinho em frascais.

Avizinhava-se o fim!
Mas sereno, eu não fraquejava
Antes sentia fremente em mim
Uma oração que exultava.

De fé, de alegria, jamais de tristeza.
É que toda a minha vida
Fora um carreiro de amor
Onde até a própria dor
Se transformava em cantiga.
Essa gente camponesa
Ai como me pulsava forte
No âmago de cada espiga.

Gente de corpo inteiro!
No seu todo não sei que chama
Lembram-me o audaz guerreiro
Que combatia a mourama.

Hoje é um engenho mecanizado
Que me semeia sem ternura, à deriva
E na primavera sou mondado
Com química tóxica, nociva.

Criado numa imensidão
Onde só o silêncio fala
Ao meu berço de solidão
Nem uma cantiga o embala.

Até que a máquina gigantesca, infernal
Cai sem piedade sobre mim
Ceifeira! Chamam àquele monstro sem alma
E eu revoltado perco a calma
Porque lhe chamam assim.
Ceifeira! Como a camponesa gentil
Ai, meu tormento desafiado
De franjas daria mil.

Tentando que o pobre não percebesse
Que como ele eu chorava
Digo-lhe: esquece o passado, esquece
Todo o mundo é composto de mudança
Já um grande poeta cantava.

É o progresso meu amigo.
Longos anos tolhido
Liberto fez ouvir a sua voz
Bom? Mau? Não sei, não to sei dizer
Eu só sei que por vezes faz doer
A seres assim como nós.


Virgínia Maria Dias

Rasteja uma luz negra



Escuto as palavras que amontoas na intermitência do sentir
as que traduzem o silêncio e os gestos da sobrevivência
e onde rasteja uma luz negra
a mesma que um dia te absorveu a pele e te cristalizou o
sangue

observo esses cristais-palavras a dissolver-se na neve
a manter-se espelho
ou a lapidar-se em eco

e não sei o que fazer com a espuma que me fica
entre os dedos


Ana Viana

E cada vez que escrevo ou falo...



E cada vez que escrevo ou falo
afasto-me do que digo
distancio-me das coisas do mundo
e do meu corpo
me escrevo
para a evidência irredutível
do mundo
o real é o absoluto
fora de mim e em mim
inalienável
inviolável
intraduzível
por toda a parte para onde vou
ou onde estou
desde que o sinto ou o pressinto
num vislumbre
é então que começa o começo
num incessante pulso

Que notícia posso eu dar
do que se passa comigo
no mundo?

Ninguém o sabe ao certo
mas o poema atravessa a noite da ignorância
sem esclarecer
como se iniciasse
obscuramente
irrecusavelmente
o que no mundo sem o antecipar
é o que não era ainda
no mundo
a impossibilidade genética
do poema.

Se escrevesse que a mão aberta
era uma estrela de cinco dedos
seria uma imagem ainda aleatória
mas determinada pela convergência de um sentido
em que a liberdade livre da poesia
quase se reduzia
a um semantema
como se num barco à vela
o leme dirigisse a vela
como um leme
numa direção unívoca
e a vela não se enchesse com o vento
como uma rosa redonda
no fluir do barco
na ondulação da maré
numa vivacidade elemental
liberto da estrutura rígida de um sentido
imposto como um sinal
de trânsito.


António Ramos Rosa

Cosi-te a mim



Cosi-te a mim
em poema
bordadas
as palavras
fios de vida


Isabel Solano

Meu fado, meu doce amigo




Meu fado, meu doce amigo
Meu grande consolador
Eu quero ouvir-te rezar,
Orações à minha dor!

Só no silêncio da noite
Vibrando perturbador,
Quantas almas não consolas
Nessa toada d'amor!

Cantando p'r uma voz pura
Eu quero ouvir-te também
P'r uma voz que me recorde
A doce voz do meu bem!

Pela calada da noite
Quando o luar é dolente
Eu quero ouvir essa voz
Docemente... docemente...

Florbela Espanca

8.22.2009

Agora é apenas um café com paredes adornadas


Agora é apenas um café com paredes adornadas,
imagens retratando destemidos ancestrais.
O tempo foi passando, não foi? Um acidente
em câmara lenta a uma escala cataclísmica.

Grande parte daquilo que fazemos é construir
memória, uma promessa frágil ao futuro.
E pensar que na vida acumulamos tanta coisa,
sobretudo se por hábito não deitamos nada fora.

Mas ninguém pode travar a grande máquina.
Diz-se que a viagem conta mais do que o destino.
Perscruto as águas envolventes, em busca de
sombras, enquanto o mar revolto bate no casco.


Vítor Nogueira

8.21.2009

A passagem do ano

Rose sur Livres II Art Print

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olhar e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras expreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasta renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

8.19.2009

Azul e vermelho



Em azul morrerei um dia
envolto em ramos de tamarindos...
Azul como azul do meu azul,
serenamente...
Vermelho como o vermelho do meu vermelho
ardente...

Figueiras da índia da «Ilha dos Galegos»
dizei-me:
que contam das ondas à beira-mar?...

Azul dos olhos das sereias,
que emprestam às vagas
a cor...
Vermelho como o desejo flamejante
do sol-pôr...

Orlando de Albuquerque

Literato cantabile



agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.


Torquato Neto
Brasil

8.18.2009

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!

Mário Quintana (poeta brasileiro)

8.17.2009


Veleiro

Parti com o vento. O mar cheirava a sal.
Rangiam mastros, estalava a quilha,
mas ganhando a distância, milha a milha,
o meu barco vencia o temporal.

Finalmente aproámos a uma ilha
envolvida num tépido areal,
onde não vimos rasto de animal,
mas que cheirava a sândalo e a baunilha.

Seria o céu? À sombra de um coqueiro
repousavam asas do veleiro
como asas dum pássaro doente...

Bananeiras, hibiscos e bambus,
leite de coco, sumo de cajú...
Seria o céu?, Talvez, mas sem serpente.

Fernanda de Castro
Que Glória tão Completa

Luisia II Art Print by Judeen

Que glória tão completa não estar nunca
onde ela sobe da multidão. Que glória
é ordem alastrando da estrutura
pela massa de vir a ser a obra
até que ser em si tanto a institua
que ser em si seja uma luz à volta.
E, que glória, perder-nos pela funda
atenção à tarefa, quando a nossa
corporeidade apenumbra
estarmos destruindo alguma sombra.
Então o afinco da paciência a blusa
quase ilumina. E as horas,
na oficina do tempo, ampliam sua
ondeação de se ir perdendo a história.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

8.16.2009

Envelhecer no Porto



Uma peça de roupa
havia caído da varanda
e balouçava agora, temerária,
sobre o abismo do rés-do-chão.

Só tu, vizinha,
poderias salvá-la,
estendendo o braço
a partir do andar de baixo,
tu a quem durante anos só escutara
os passos subindo as escadas,
os joelhos roçando o plástico das sacas
com medicamentos prescritos
para a solidão,
comida para o gato
e um pouco de pão,
tu a quem só vira os cabelos nevados
do alto da minha janela,
mas nunca o rosto esperando
os quintais de madrugada,
suspeitando que não passavas
de fantasma, ou fábula,
apesar das cartas caídas à entrada
e, de longe em longe,
o tinir do chaveiro
rente à porta.

Enquanto medias cada passo
no mosaico de tapetes roídos
e me deixavas, paralisado,
no decano tapete da entrada,
afundei-me no espesso quarto
que aos olhos deste vizinho
assim todo se entregava,
decorado com manchas de hunidade,
fissuras na parede
e estuque no soalho.

Numa cómoda velavam santas
com róseas crianças ao colo,
sobre todas reinando os mil rostos
de Nossa Senhora de Fátima
(em plástico, cera, alumínio,
estanho, bronze e porcelana):
suas mãos fosforescentes oravam,
verdes, na penumbra
de onde nasciam molduras
com netos a rir em férias,
jóias em caixas de veludo,
água de rosas, rebuçados da Régua,
molhos de cartas, lenços de cambraia
e até – inconfessado –
um vinil do António Variações.

Um elevador, senhorio,
um elevador fazia falta,
um que só parasse
no céu, e não fizesse o corpo
pagar o que não pode,
o corpo há muito falido,
nas escadas do prédio
desistente
e ferido.


Rui Lage
Retrato de mulher nua, com soldados



Nua
Tinha tatuado na púbis
um caminho que desprezaram

O próprio rosto desnudaram
E os seus sonhos de virgem
Jogaram-nos manchados nos panos
que rasgaram

Quieto
O seu olhar era longínquo
como a entrega que buscaram,

No seu ventre
não havia um frémito
e os seios
pendiam infecundos.

Arnaldo Santos (poeta angolano)

Morena



Morena, morena
Dos olhos castanhos,
Quem te deu morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos
Não vi nunca assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos galantes,
Teus olhos morena
São dois diamantes.

São dois diamantes
Olhando-me assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.

Morena, morena
Dos olhos morenos,
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos
Não sejas assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.


Júlio Dinis

8.15.2009

Provérbio


Meu corpo
é um tear vertical
onde deixaste cruzadas
as cores da tua vida : duas faixas um losango
marcas da peste.

Meu corpo
é uma floresta fechada
onde escolheste o caminho

Depois de te perderes
guardaste a chave e o provérbio.


Ana Paula Tavares
Angola

A essência da vida


A essência da vida: o amor.
Folhas nascendo nas árvores,
e o prazer de colher
o azul celeste derramando-se.
A embriaguez líquida da natureza.
O suporte. A chama. O telhado…
Horas de convivência com o que transcende.
A alegria profunda da memória.


Vítor-Luís Grilo

Aniversário




No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos

8.14.2009

O carochinha



Dos voos de Marcelo, o transformista,
em doméstico dom repousa a asa:
farto de andar ao trapo e ser fadista
torna-se modular dona de casa.

Na modéstia exemplar dessa roupeta
− Ó eleitoral, virtuosa esfalfadeira
de ser dono da casa lisboeta! −
vai Marcelo às mercas na Ribeira,

enche a dispensa, lava a roupa é cozinheiro,
cose a meia, faz tricot, varre a casinha!
Por fim, põe-se à janela e diz faceiro:
Quem quer, quem quer casar com a carochinha?


Natália Correia
Não são flores




Não há flor que cante
toda a dor que sinto,
não há fantoche falante
que diga que minto.

É a verdade do nosso sorriso
e as lágrimas do nosso olhar
que ao longe diviso
irem encher o mar.

As flores não são flores
e os cravos não são de sol,
nesta vida só há dores
e flores murchas sem escol.

Na sombra da minha sepultura
sinto que não minto, mas sinto
a morte que nos beija e cura
a ferida que por aqui pinto.

Não são flores de verde pinho
nem sequer cravos encarnados,
são os espinhos do meu caminho
e as cicatrizes de filhos sacrificados.


Orlando Castro (poeta angolano)

8.13.2009

Vimos de algures onde cantam as folhas


Vimos de algures onde cantam as folhas
e no chão das flores projectamos o sono
vimos todos vimos de muito longe onde
os pássaros não são um mero adorno
e cantam cantam nós vimos de algures

cujo nome esquecemos não é sítio não
há mapa capaz perdeu-se o dicionário
a geografia e perguntar agora não ajuda
é de algures é certo é mais que certo
mas a boca da resposta é muda e vimos

com as mãos de dedos mais vazios que
uma lágrima pura um cristal perfeito
cuja beleza provém dessa estrutura interna
dessa linha que passa como um eixo entre
o presente e o tempo remoto a primavera

pode ser de onde vimos ninguém sabe
ao certo ninguém nega só sabemos que
lá cantam as folhas e no chão das flores
projectamos o sono e no sonho bebemos.


Nuno de Figueiredo

Convite



Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.


Lya Luft
Brasil

A Benção da Locomotiva



A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.

Como ela é concerteza o fruto de Caím,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,
E convertam-na à fé Católica Romana.

Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados,
Como saímos nós dos ventres maternais!

Vamos, esconjurai-lhes o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,
E há-de ser com certeza um pouco protestante.

Para que o monstro corra em férvido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além de algum carvão.

Atirem-lhe uma hóstia à boca fumarenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.


Guerra Junqueiro

8.12.2009

Serradura



A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim; a minh’Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o ‹‹Matin›› de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo!

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da ‹‹Capital››
Pelo nosso Júlio Dantas ―
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me percate,
É capaz dum disparate,
Se encontra uma porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil ― partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar: ‹‹viva a Alemanha››…
Mas a minh’Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade.

Vou deixá-la — decidido ―
No lavabo dum Café
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.


Mário de Sá-Carneiro
Não




Em torno aos meus sentidos,
Nos quais prevejo erguidos
Paços reais de mistérios.
Cinjo-me de cor,
E parto a demandar.
Tudo é Oiro em meu rastro –
Poeira de amor...
Adivinho alabastro...
Detenho-me em luar...
Lá se ergue o castelo
Amarelo do medo
Que eu tinha previsto:
As portas abertas,
Lacaios parados,
As luzes, desertas –
Janelas incertas,
Torreões sepulcrados...
Vitória! Vitória!
Mistério é riqueza –
E o medo é Mistério!...
Ó paços reais encantados
Dos meus sentidos doirados,
Minha glória, minha beleza!
(– Se tudo quanto é doirado
Fosse sempre um cemitério?...)
Heráldico de Mim,
Transponho liturgias...
Arrojo-me a entrar
Nos Paços que alteei,
Quero depor o Rei
Para lá me coroar.
Ninguém me veda a entrada,
Ascendo a Escadaria –
Tudo é sombra parada,
Silêncio, luz fria...
Ruiva, a sala do trono
Longes se aglomeram
22
Ecoa roxa aos meus passos.
Sonho os degraus do trono –
E o trono cai feito em pedaços...
Deixo a sala imperial,
Corro nas galerias,
Debruço-me às gelosias –
Nenhuma deita p'ra jardins...
Os espelhos são cisternas –
Os candelabros
Estão todos quebrados...
Vagueio o Palácio inteiro,
Chego ao fim dos salões...
Enfim, oscilo alguém!
Encontro uma Rainha,
Velha, entrevadinha,
A que vigiam dragões...
E acordo...
Choro por mim... Como fui louco...
Afinal
Neste Palácio Real
Que os meus sentidos ergueram,
Ai, as cores nunca viveram...
Morre só uma Rainha,
Entrevada, sequinha,
Embora a guardem dragões...
............................................................
............................................................
– A Rainha velha é a minha Alma – exangue...
– O Paço Real o meu génio...
– E os dragões são o meu sangue...
(Se a minha alma fosse uma Princesa nua
E debochada e linda...)


Mário de Sá-Carneiro
Lisboa, 14-12-1913

Assassinando a saudade



Há quanto tempo, amor
não te sentas no sofá
diante do ecrã
para deliciar
os versos meus
que com todo
o carinho
concebi
só para te amar
há quanto tempo, amor
não me espreitas
navegando aqui
contigo
por ti e para ti...
Ah!
Há quem defenda
um desaparecimento
momentâneo
para criar
saudade
e quando esse
instante passa
há um prazer
enorme
em assassinar
a saudade...
Não sei se acredito
nisso,
mas cá estou
assassinando
lentamente
a saudade.

Domi Chirongo
Moçambique

8.11.2009

Tauromaquia


o duro touro o puro miserere
engendrado talvez a papel químico
levado até ao curro mais irónico:
um bode expiatório e ambidextro

o boicotado* o sem habeas corpus
um bicho apenas puramente o bicho
definido nos olhos* sem demora
definitivamente: apenas isto

luto de ferro curtido
fundido em curto-circuito
enxuto surdo centrípeto
e muito mais do que muito

enquanto a mão artificio
lhe pirotecnisa as feridas
na funda esgrima dos círios
de domésticas tentativas
de investimento da morte em outro ventre
porque o touro entre nós é como gente:
tenta matar sem compromisso
por puro vício

assim* na mesma praça a mesma casa
e menos do que sol: espanholada
o touro o um homem reincide;
apenas isto: uma maré em riste


Vasco Graça Moura

8.10.2009

Corto Maltese


Nada é perfeito como a tua noite
se outro sol nela se levanta
quota parte de treva que anuncia
a traço grosso o rosto claro instante.

Olhos febris a boca estremecendo
à simples sugestão da queimadura
movimento subtil age os quadris
do frémito possante que insinua.

Barco fundeado no horizonte
movimento do vento que se espanta
se acaso luz feroz evidencia
prata liquida de fuel flagrante.

A noite inunda-te. A lua espelha no mar sua moldura
pueril respiração do peito erguendo
zona de sombra onde tudo diz
que antes mesmo da nudez já estavas nua.


Bernardo Pinto de Almeida

8.07.2009

Nessa noite ficámos retidos na estrada.



Nessa noite ficámos retidos na estrada.
Os seus documentos, por favor.
Sim. Pode seguir. É sempre em frente.

As luzes eram tantas.
Projectavam, lado a lado, o teu rosto e o meu.

Gostaria de me ter despedido desse céu,
Antes que morresses numa página,
Num quarto de hospital,
Ou noutro lugar qualquer
Onde pudéssemos, em contracurva, despistar o leitor.

Sim. Pode seguir.


Rui Pedro Gonçalves

Magnus Rosendahl



sê devastador e violento como a tempestade
ao abrir as gavetas, ao depor sobre a mesa
nenhuma razão que outros conheçam. alimenta-te
de mim e de ti, guarda as fotografias em paredes
brancas onde nenhuma ave se demore,

abre-me as feridas, as mais recentes e as antigas.

sê brando e lento como as manhãs de dezembro
ao desfazerem-se em neve, esquece os recados,
os pequenos delitos escondidos em segredo.
os telhados abrigam-nos da maledicência, do azar,
daquilo que o tempo gasta em passar sobre nós.

leva-me assim, como um acidente entre os dedos.

sê luminoso e intenso, ó meu amor, retrato escondido,
colecciona os declives, ensina-me essa geografia,
sê inocente e puro, mesmo que a noite interrompa a vida
e a nossa pele estremeça. deixa que bebamos
apenas se o prazer magoar onde nasce a sede,

fala-me de mim e de ti, se nos sentarmos mas dunas.


Francisco José Viegas

8.06.2009

Se me escolheres




Se me escolheres
Me quiseres como te quero
Se pegares em mim
E me guardares
Protege-me
E abriga-me
Não me deixes fugir
Não me largues
E faz-me tua
Faz-me tão tua
E única
E diferente de todos…
Se me escolheres
Me quiseres como te quero
Ama-me sempre
Sem mentira
Sem medo
Sem vontade de fugir
Com vontade de querer
E com desejo
De viver, rir
Crescer…
E faz de nós Um
Tão forte, grande
Único
Como a escolha feita
De nos querermos
Neste para sempre
Que é só nosso
Agora…


Maria Ana Ferro