7.30.2008


Não ponho esperança em mais nada


Não ponho esperança em mais nada.
E se puser
Há-de ser ambição tão desmedida
Que não me caiba sequer
No que me resta de vida.
Ambição tão irreal,
Tão paranóica, tamanha
Como a grandeza de Espanha
Com Granada e o Escurial.
Porque esta esperança que ponho
Em ver-te sair um dia
Da verdade para o sonho,
É como ser-se feitor
Dalguma herdade cansada:
À terra, dá-se o melhor,
A terra não nos dá nada.


Reinaldo Ferreira



7.29.2008

Operação da guerra de libertação


Esta árvore amiga é o inimigo
Destroncar esta árvore é uma operação contra o inimigo.

Escolhemos um inimigo, inimigo, à medida da nossa grandeza
Um inimigo do tamanho da nossa tarefa
Que vai dar muita chatice a cair, e táctica e estratégia
E vai servir derrubado melhor que em pé
Pois se que esta terra é boa para uma árvore tão alta
Há-de ser muito boa para dar machamba.

Vai ser ataque de serrote ou machada ou enxada na raiz?
Vai cair para o lado do vento?

Vai ser de cinto de fogo ou trotil mesmo?
Vai ser com as mãos fazendo força, camaradas?

Onde há uma árvore maior que a força do Povo?

Se vier o velho, a mulher, o menino, todos um e um e um
Riscar com a unha do dedo pequeno, lamber com a língua
Nove milhões de pequenas carícias e pouca força Esta árvore cai mesmo.
Por onde passa o Exército de Libertação
Fica um rasto verde e cheiroso e o caminho aberto
Para passar a Liberdade e o Futuro.
E fácil ver quem passou aqui.


Mutimati Barnabé João
Moçambique

7.28.2008

Deve ser o último tempo


Deve ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Deve ser o último degrau na escada de Jacob
E último sonho nele
Deve ser-lhe a última dor no quadril.
Deve ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Deve ser a véspera.Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.


Daniel Faria
Debaixo das Oliveiras


Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.

O mês em que a brisa me pôs nas mãos
uma harpa de folhas
e a terra me emprestou
sua flauta e sua lua.
Maré viva. Meu sangue atravessado
por um cometa visível a olho nu
tangido por satélites e aves de arribação
navegado por peixes desconhecidos.

Este foi o mês em que cantei
como quem morre e ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba.

O mês em que subi a uma colina
dentro de minha casa
olhei a terra e o mar
depois cantei
como quem faz com duas pedras
o primeiro lume. Palavras
e pedras. Palavras e lume
de uma vida.

Este foi o mês em que fui a um lugar santo
dentro de minha casa.
O mês em que saí dos campos
e me banhei no rio como quem se baptiza
e cantei debaixo das oliveiras
as mãos cheias de terra. Palavras
e terra
de uma vida.

Este foi o mês em que cantei
como quem espelha ao vento suas cinzas
e cresce de seu próprio adubo
carregado de folhas. Palavras
e folhas
de uma vida.

O mês em que a mulher
tocou meus ombros com sua graça
e me deu a beber
a água pura do seu poço.
Este foi o mês em que o filho
derramou dentro de mim
o orvalho e o sol
de sua manhã.

O mês em que cantei
como quem de si se perde e reencontra
nas coisas novamente nomeadas.

Este foi o mês em que atravessei montanhas
e cheguei a um lugar onde as palavras
escorriam leite e mel.
MILAGRE MILAGRE gritaram dentro de mim
as aves todas da floresta.

Então reparei que era o lugar do poema
o lugar santo onde cantei
entre mulher e o filho
como quem dá graças.

Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.

Manuel Alegre



Da grande página aberta do teu corpo

Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
uma nódoa no teu peito de água clara

Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto
meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol

Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cais vencida flor


António Ramos Rosa



Esta situação


E a senhora dos filhos e dos gritos e da malha
não falha nenhum dia chega sempre à mesma hora
Poderás ser feliz: basta mudar de esplanada
mas acredita não resolve nada
a mesma água vem na mesma calha
e é tudo como antes para aquele que chora:
a mudança é fatal até para a face mudada
Já nela havia rugas e era fresca e corada
A cara da senhora? Não. Mas espera, talvez
o que eu disse estivesse já dito de vez
E eu só amanhã me vou ontem embora


Ruy Belo


7.27.2008

Canção grata


Por tudo o que me deste:
- Inquietação, cuidado,
(um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
- Obrigado, obrigado!
Por aquela tão doce e tão breve ilusão,
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!
Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!


Carlos Queirós



Pela noite à eterna dor se chega

Hebergeur d'images

Pela noite à eterna dor se chega
cruel é a terra, diversa terra
quando teu rosto se esvai
e a névoa com voz de pranto
cai jamais leve sobre nós.

De breve uso, cresce no peito
uma tímida pálida alegria
precioso corpo luz, borboleta
de asas nítidas e tranquilas
que vigia o coração dos mortos.

Diz-me secretas brandas palavras
porque sou refúgio e escombro
de um vasto dia, áspero exílio
nas suaves sílabas de precisos
e curvos juncos, clarão sem sol.

Desce então pelo fulgor da luz
espírito suspenso em minhas mãos.
A espera é movimento cego.
Desce, sonâmbulo, extenso amor.


Ana Marques Gastão

Moçambique


Ó Oriente surgido do mar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar

Alberto de Lacerda
Moçambique



Quisera um dia


Quisera um dia
a terra
o hábito de ser carne
membro boca olho
ou areia molhada
que o mar reclama
e eis que súbita
a pele grávida
a margem flácida
se desaba cada segundo
onde um grão amassa um filho.


Eduardo White
Moçambique

7.26.2008

Ovelhas e Bibliotecas: Sofrimentos

Hebergeur d'images

É um certo tom que eu não sei derivar
como devia: uma transparência, um esbatimento,
a abstracção das coisas.
A ovelha a meio do campo, vista deste combóio,
sofre só dessa teITivel solidez: ovelha

O mesmo se passa com a minha cozinha, ou
um livro, ou uma emoção:
um assado bem feito pode superar
qualquer capítulo bem anotado,
o cheiro das cebolas é às vezes
mais transcendente
do que tantos caracteres
a que f'aIta sal

Neste momento, está atrasado o combóio,
um inter-regional que pára nas estações todas,
mas há sol, e assim fico a conhecer
os apeadeiros portugueses, e talvez me sirvam
de poema mais tarde, e tenho o privilégio
de me comover com os seus tons
floridos

Agora a linha é mais simples e estreita,
correndo, paralela, à Estrada Nacional,
uma linha de frase básica,
só com os elementos principais.
Mas, às vezes, a ovelha que a atravessa, secante,
dá-lhe uma certa vírgula romântica

É num tom desses que eu me sei mover.:
no intermédio cruzamento
dos portões do real,
nas despensas do mundo

Essas em que guardo o resto dos temperos,
um ou outro feitiço
no Livro de Receitas -

Ana luísa Amaral

Ciclo do álcool


1

Quando seu Silva Costa
Chegou na ilha
Trouxe uma garrafa de aguardente
Para o primeiro comércio.

A terra era tão vasta
Havia tanto calor
Que a água
Parecia não ter potência
Para acalmar a sede da sua garganta.

Seu Silva Costa
Bebeu metade...

E sua garganta ganhou palavra
Para o primeiro comércio.

2

A lua batendo nos palmares
Tem carícias de sonho
Nos olhos de Sam Márinha.
Silêncio!
O mar batendo nas rochas
È o eco da ilha.
Silêncio!
Lá no longe
Soluçam as cubatas
Batidas dum luar sem sonho.
Silêncio!
No canto da rua
Os brancos estão fazendo negócio
A golpes de champagne!

3

Mãe Negra contou:
"eu disse:
filhinho
beba isso coisa não...
Filhinho riu tanto tanto!..."

Nhá Rita calou-se.
Só os olhos e as rugas
Estremeceram um sorriso longínquo.

- E depois Mãe-Negra?

"Oh!
Filhinho
Entrou no vinhateiro
Vinhateiro entrou nele..."

Os olhos de nhá Rita
Estão avermelhando de tristeza.

"Hum!
Filhinho
Ficou esquecendo sua mãe!


Francisco José Tenreiro (poeta santomense)


7.24.2008


Não desisti de habitar a arca azul


Não desisti de habitar a arca azul
do antiquíssimo sossego do universo.
A minha ascendência é o sol e uma montanha verde
e a lisa ondulação do mar unânime.
Há novecentas mil nebulosas espirais
mas só o teu corpo é um arbusto que sangra
e tem lábios eléctricos e perfuma as paredes.
Aos confins tranquilos entre ilhas mar e montes
vou buscar o veludo e o ouro da nostalgia.
Deponho a minha cabeça frágil sobre as mãos
de uma mulher de onde a chuva jorra pelos poros.
Ó nascente clara e mais ardente do que o sangue,
sorvo o cálice do teu sexo de orquídea incandescente!
A minha vida é uma lenta pulsação
sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol.
Há bois lentos e profundos no meu corpo
de um outono compacto e negro como um século.
Com simultâneas estrelas nas têmporas e nas mãos
a deusa da noite, sonâmbula, desliza.
Ao rumor da folhagem e da areia
escrevo o teu odor de sangue, a tua livre arquitectura.
Prisioneiro de longínquas raízes
ergo sobre a minha ferida uma torre vertical.
Vislumbro uma luz incompreensível
sobre os campos áridos das semanas.
Elevo o canto profundo do meu corpo
sob o arco das tuas pernas deslumbrantes.
Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões
ou como se tocasse os teus joelhos planetários
ou adormecesse languidamente no teu sexo.


António Ramos Rosa



Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti

E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela
quinta-feira o dia do amor em vez de ser
na quarta, o erro surge-me gigante,
um peso carregado como Atlas

Por isso é que preciso de lembrar coisas
exactas, como aconteceu tudo; não só
transpor depois na ficção recolhida, sou eu
que te preciso e dos teus dias
que me foram meus

Lembrar-me exactamente como foi, o que usei
nesse dia e o que usei no outro, até que horas
tudo, se havia gente ou não
e em que dia. Porque as palavras depois se
reconstroem

O que se disse então torna-se fácil.
Assim dito parece coisa pouca,
lugar comum e
fácil, mas as noites são grandes

e lembrar-se
exactamente,
de uma forma correcta

é-me tão importante
dentro das noites a pensar em ti
sabendo: não te vejo nunca mais

Ana Luísa Amaral
Meditação Sobre os Poderes

Stone Reflections I Photographic Print by Nicole Katano

Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vénias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.

José Jorge Letria

7.23.2008

Nem os dias longos me separam da tua imagem.

Hostingpics

Nem os dias longos me separam da tua imagem.
Abro-a no espelho de um céu monótono, ou
deixo que a tarde a prolongue no tédio dos
horizontes. O perfil cinzento da montanha,
para norte, e a linha azul do mar, a sul,
dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia
quando, ao dizer o teu nome, a realidade do
som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo
o silêncio para que dele possas renascer,
sombra, e dessa presença possa abstrair a
tua memória.

Nuno Júdice

7.22.2008

Algo se me assemelha


Algo se me assemelha
e me quer para si

me desembainha
quando menos espero

Distorção do espírito
para a morte

como o corpo num salto
irremediavelmente
lento
e
alto


Luiza Neto Jorge

Para sul


Na noite em que passámos o Rio Rovuma
Apontei para Sul com o nariz, com o coração, com os pés
Fiquei completamente orientado para Sul
Com esta terrível doença de febre da coragem
Que só nos deixa, camaradas, fugir para Sul.

Na noite em que passámos o Rio Rovuma
Fiquei completamente torcido para a frente
Com a minha vida como um trilho direito
Com esta terrível doença da alegria da garganta
Que só nos deixa, camaradas, cantar para Sul.

Na noite em que passámos o Rio Rovuma
O Sul estava sempre na minha frente teimoso
E como uma árvore de messassa que fosse andando
Senti o musgo e os bichos crescerem nas minhas costas
Podia vê-los crescer nas tuas costas camarada da frente
Também com esta terrível doença da impaciência nas costas
Que só nos deixa, camaradas, livres de ir para Sul
O nariz, o coração e os pés apontando.

Levo a arma atravessada na bandoleira e vou para Sul.
A Razão que nos leva para Sul, camaradas
E que é a nossa arma melhor engatilhada apontando
Para todos os lados ao mesmo tempo.


Mutimati Barnabé João
Moçambique

7.21.2008

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio


Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a



Daniel Faria

Escrevo-te com o fogo e a água


Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.


António Ramos Rosa


Todos os dias


Todos os dias nascem pequeninas nuvens,
róseas umas, aniladas outras,
nacaradas espumas...
Todos os dias nascem rosas,
também róseas ou cor de chá,
de veludo...
Todos os dias nascem violetas,
as eleitas dos pobres corações...
Todos os dias nascem risos, canções...
Todos os dias os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs...
Todos os dias nascem novos dias,
nascem novas manhãs...

Saúl Dias




Pernoitas em mim e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes


Al Berto



Mortis causa


Mulher de gestos dia a dia mais pequenos,
fosses tu qualquer coisa, uma cadeira ao menos
houvesse para ti sempre lugar em tua casa
e não ires um dia assim convencional serena
como papel ou lixo pela escada abaixo

Mulher espremida enquanto deste vida
e resumida à pequenina luz que se liberta
do gesto estritamente necessário linha recta
para anular o espaço entre a mão e a coisa
movimentos dos dias divergentes de outros dias
E tudo vai moendo e remoendo momento a momento
triturando colhendo arrepanhando
face ficta fraca e fixa
a fruta em frente fita, frígida fremente


Ruy Belo



Testamento


Se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
Será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.

Se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.

Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.

Se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,

pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que não me repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito.


Rui Knopfli


A voz do pedreiro



O basalto é uma ave negra de silêncio
é uma ave que anoiteceu num sono inextinguível

No meu gesto ergo o símbolo um martelo suspenso
e num ápice rasgo o manto das horas descansadas
assim inicio o ciclo das manhãs operárias

Do ventre das rochas que fecundo nascem
casas cadeias e palácios
que da pedra conhecida
meus olhos depois desconhecem
mas da pedra que semeio o que colhi?

a minha casa de madeira e vento
o meu bairro escuro sossobrado no sono de caniço

Vai sendo a pedra esculpida pelo homem
pedra alada
Vai sendo o homem esculpido pela pedra
mão petrificada

Dizes-me: és o operário dos pássaros congelados
eu amo-te como se ainda esculpisse
como se nos meus braços
viajasse ainda um martelo suspenso
o gesto com que inicio a madrugada
como se fosse ternura
esta desajeitada forma
com que te desfolho
como se fosse o meu corpo
um domingo derramado
na cidade inquieta do teu corpo

Vai-se o homem trocando pela pedra
em cada pedra maus suada
ucircula agora
o nosso sangue proletário

E construtor anónimo de cidades
construtor destas mãos
que se vestem de poeira e rugas
produtor de cidades
onde o meu nome esquecido soterrado
se erguerá do negro corpo de basalto
Eu serei a voz das pedras
Eu serei a voz dos homens no basalto


Mia Couto
Moçambique

7.20.2008

A nossa época


Acordo e vejo num lampejo
A nossa época frenética
A nossa época patética
- Tão claramente, como vejo
O relógio-despertador:
Nítido, frio, rigoroso...
Contudo, tão misterioso
Como a poesia e o amor.

Carlos Queirós


Última Página


Vou deixar este livro. Adeus.
Aqui morei nas ruas infinitas.
Adeus meu bairro página branca
onde morri onde nasci algumas vezes.

Adeus palavras comboios
adeus navio. De ti povo
não me despeço. Vou contigo.
Adeus meu bairro versos ventos.

Não voltarei a Nambuangongo
onde tu meu amor não viste nada. Adeus
camaradas dos campos de batalha.
Parto sem ti Pedro Soldado.

Tu Rapariga do País de Abril
tu vens comigo. Não te esqueças
da primavera. Vamos soltar
a primavera no País de Abril.

Livro: meu suor meu sangue
aqui te deixo no cimo da pátria
Meto a viola debaixo do braço
e viro a página. Adeus.

Manuel Alegre


Peregrino



Ó alma errante, onde brilha o fulgor
Das perguntas que a terra silencia,
O que buscas? A que estranho vigor
De visão tu aspiras noite e dia?

Porque me trazes o manto rasgado,
E me rasgas a mim, que tu geraste?
Amas ou não este humano traslado,
Arremedo divino, flor só haste?

Porque nos perseguimos sem nos vermos,
De terra em terra, na esperança, no esforço?
Aonde a luz dos invisíveis ermos
Brilhando inteira na luz de um só corpo?

Onde pressentirás o teu começo?
Então descansarás. Nada mais peço.

Alberto Lacerda
Moçambique

Escrevo-te, melancólico,



(Ao Rui Nogar)


Escrevo-te, melancólico,
estas palavras reverberadas
nas folhas das palmeiras.
A tua ausência ganha,
em mim, a forma dum poema
subitamente inacabado.
O nojo e o frio do teu silêncio
apaga a lógica poética
em que me fundo.
A bordo do teu nome vazio
escrevo-te estes versos
com a azul absurdo deste dia.


Armando Artur


Mulher negra




Mulher negra
mulher sofredora
sem lágrimas de pranto
cadela de filhos roubados
afogados e açaimados
mulher do branco
prostituta dos matos e das ruas fáceis
mulher dos seios amplos cujas tetas
de loba amamentam filhos
-rómulo e remo –
dos espólios do seu ventre
mulher besta-de-carga da lavra
e do pão da boca dos filhos
mãe de filhos abandonados
amparados nos seus braços
estranhos e banidos
no instinto de repulsa
das duas cores
entre as duas cores
do arco-íris da terra
entre os seus braços
o único refúgio
o certo amparo
o seguro refúgio
dum coração sereno

mãe
mulher das longas vigílias da febre
do sertão
travesseiro e amparo
num coração desamparado
dando-se sem esperança
mulher de corpo gasto
sem lábios já para sentir
o travo da traição
mulher que deixa o cadáver insepulto

às hienas e à noite
de animal abandonado
mãe dos filhos abandonados
mãe dos filhos que matam por vingança
mar dos filhos que procuram redimir
a carne dos pecados do mundo
mãe do alento da última esperança
mãe cujos filhos saberão
saber dos privilégios
das tuas virtudes
e dar a mão a todos os homens
na face da terra

mãe
nada pelo que passaste
e sofreste
mãe
será em vão

Alexandre Dáskalos
Angola

7.19.2008


Romance de Sam Marinha


Sam Marinha
a que menina foi no norte
chegou naquele navio à ilha.

Risadas brancas
e goles de champagne!

À hora do espalmadoiro
os moços do comércio
passaram de gravatas garridas.
O monhé chegou na porta
e limpou o suor
ao lenço de seda que importou do Japão!

Ai!
Aquela que chegou na ilha
como uma risada branca
está fechando a carinha a terra.

Braços pendentemente tristes
só os olhinhos
estão pulando para lá da fortaleza
querendo ver a Europa!...

Á hora do espalmadoiro
os moços do comércio
passaram de gravatas garridas.
O monhé chegou na porta
e limpou o suor
ao lenço de seda que importou do Japão!

Ai!
Aquela que chegou na ilha
como uma risada branca
está fechando a carinha a terra.

Braços pendentemente tristes
os olhinhos
estão pulando para lá da fortaleza
querendo ver a Europa!...


Francisco José Tenreiro (poeta santomense)


Doce fantasma, por que me visitas



Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.

Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma ideia platónica no espaço?

O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.


Carlos Drummond de Andrade



Maxilar Triste


Suave curva dolorosa
atenuando o bordo rijo
desse rosto derradeiro
de brancura infinita.

Impugnando-lhe a doçura,
a antinomia do tempo
acentuará os duros ângulos
num mapa de tristeza

irreparável. O sorriso
vago nela projecta um
brilho fosco de loiça antiga:
espreitando na carne
os dentes anunciam o resto.


Rui Knopfli

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço


Mia Couto

Vigilância



Este missionário está muito claro por dentro
Anda muito bem como um homem na mata
E tem um sorriso de quem está tudo perfeitamente
E chegou agora de estar no serviço de Jesus da Nazaré
Que é um sócio católico romano e compadre.
Está tudo perfeitamente claro fora deste missionário
Com sol ou com chuva ou com noite
Está tudo perfeitamente claro
Claro!

Só o que está um pouco na confusão
E este verniz raspado com o meu nome completo
Nesta carteira escolar da 4.a classe adiantada
E eu aqui incomodado com a arma entalada na porta
Não me lembrar de ter estado dentro da pessoa
Que escreveu o meu nome completo no verniz
Nem me lembrar de ter estado fora.

Há com certeza um pormenor que me subtraiu
E que explica haver tantos dentes neste missionário.
Vou sair no cuidado sem virar costas
Acho muito escuro nesta clareza
São muitos dentes todos na mesma pessoa.


Mutimati Barnabé João
Moçambique

Ah, que bela manhã de Primavera!


Ah, que bela manhã de Primavera!
Abram ao Sol as portas, as janelas!
Cheira a café com leite, a sabonete,
a goivos, a sol novo, a vida nova!

A Rua canta... sinos e pregões,
apitos e buzinas, vozes claras.
-«Gostas de mim?» -«Gosto de ti.» -E o céu
cobre a Cidade com o seu manto azul.

Ah, que bela manhã de Primavera!

Pousam no Tejo barcos e gaivotas,
com velas novas, belas asas novas.
Os eléctricos voam, transbordantes,
a tilintar, a rir nas campainhas,
e os automóveis, como borboletas,
circulam, tontos, nas ruas sonoras.

Ah, que bela manhã de Primavera!

No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas
brincam aos barcos grandes, às viagens,
e o pequeno comboio vai e vem,
como um brinquedo de menino rico.

Confundem-se nas árvores, ao sol,
folhas e asas, pássaros e flores.
É festa em cada rua. Em cada casa,
um canário a cantar, uma cortina,
um craveiro florido na janela.

Despejaram-se armários e gavetas,
frasquinhos de perfume. ..Toda a gente
foi para a rua de vestido novo,
de fato novo, de gravata nova,
e tudo canta, a Rua é uma canção.

Ah, que bela manhã de Primavera!

-«Gostas de mim?» -é o tema da canção.
-«Gostas de mim?» -pergunta-lhe ele a ela.
-«Gostas de mim?» -pergunta à flor o vento
e a flor ao rouxinol... -«Gostas de mim?»,
«Gostas de mim?», «Gostas de mim?»
Cheira a goivos, a sol, a vida nova. ..

Ah, que bela manhã de Primavera!

Fernanda de Castro

7.17.2008


Meditação Anciã


Aqui eu fui feliz aqui fui terra
aqui fui tudo quanto em mim se encerra
aqui me senti bem aqui o vento veio
aqui gostei de gente e tive mãe
em cada árvore e até em cada folha
aqui enchi o peito e mesmo até desfeito
eu fui aquele que da vida vil se orgulha
Aqui fiquei em tudo aquilo em que passei
um avião um riso uns olhos uma luz
eu fui aqui aquilo tudo até a que me opus


Ruy Belo


7.16.2008

A Música


Sempre ali esteve, a música,
o mar, e as ondas
de pássaros caindo como chuva ao fim
da tarde,
o piano tão líquido ou batendo
em acordes sobre o aço, uma
ilusão transformando
o som sem som, em tudo semelhante
ao silêncio,
a orquestra expandindo-se ou o refluxo
limpo dos pianíssimos,
ali estava
o silêncio, equivalente
ao som do mar e da cortina
de oliveiras defendidas do crepúsculo
por um muro de branco a escuro
passando, adolescente
música
como um corpo rolando nu na areia do
dia
quando na outra margem
a nota alucinada da fábrica o enchia,
o silvo que erigia em dor
o sexo,
as ondas desse mar orquestrado por
braços que nadavam.

Gastão Cruz

7.14.2008

Beijo-te Inteira África


Meus lábios procuram-te avidamente
e no delírio do meu amor por ti
beijo-te inteira África
e sou cruel terno verdadeiro
Nos troncos esguios de altos eucaliptos
shindjingritanas e soas
fazem ninhos e amor
sem a consciência das coisas
metafísicas.
Nós escutamos ritmos de jazz puro
de John Lewis
ou com volúpia dançamos
novos ritmos de marrabenta.
Mas não estamos anestesiados
pela música e pelo amor.
Meus lábios procuram-te loucamente
e no êxtase de minha derradeira entrega
beijo-te inteira África
e parto angustiado.


Duarte Galvão / Virgilio de Lemos
Moçambique

7.13.2008


Das casas e dos homens...


"Eu falo das casas e dos homens, dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava materialmente previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome, as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites, e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma, de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida,
os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,

- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...

Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada..."


Adolfo Casais Monteiro

Libera me


Livrai-me, Senhor,
De tudo o que for
Vazio de amor.
Que nunca me espere
Quem bem não me quer
(Homem ou mulher).
Livrai-me também
De quem me detém
E graça não tem,
E mais de quem não
Possui nem um grão
De imaginação.

Carlos Queirós


Flores para Coimbra



Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.

Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.

Que mil espadas floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.

Manuel Alegre



Tão longe a estrela


Tantas horas a querer
pendurar um poema
numa estrela...

Um poema,
isto é uma fala
murmurada baixinho,
escondida num papel dobradinho.
Um recado
balbuciado a medo.
Um segredo
que o Poeta
quer e não quer revelar
como a coisa mais bela.

Tão longe a estrela!...

- Não teimes mais, Poeta!
Desiste de a alcançar!


Saúl Dias



Lemos de mais e escrevemos demais
e afastámo-nos demais - pois o preço
era muito alto para o que podíamos pagar
do silêncio das línguas.

Ficaram estreitas
passagens entre frio e calor
e entre certo e errado
por onde entramos
como num quarto de pensão
com um nome suposto.

E, quanto a
tragédia, e mesmo quanto a drama moral
foi o mais que conseguimos.


Manuel António Pina

Não encontraste a rua


Não encontraste a rua
Não encontraste a casa
Não encontraste a mesa
No café que alguém
Por engano indicou.

Mas a cidade é esta
E não outra

Não encontraste o rosto

O anel caiu
Ninguém sabe aonde.


Alberto Lacerda
Moçambique

Tu


Tu
doce acre
linfo possuído
que a terra grita.
Amo-te assim
neste lado do barco.


Eduardo White
Moçambique

Calmaria


Mar!
o teu cântico verde-azul
insinuou-se-me no sangue,
salgou-me os lábios.
E o corpo inteiro
ressou-me de ecos silenciosos
esmaecidos em bruma;
os sentidos,
temperados de Sol e água,
espreguiçaram-se indolentes de ritmo.
Rara
esta inteireza de espírito,
quando nem o passado deixou resíduos
nem o futuro espreita...

João José Cochofel


Alegoria


Em Inhaminga, meu amor,
estão as armas apontadas para o céu
mas só há pássaros.

E como as armas pensam no canudo do seu cérebro
que as aves são inofensivos passarinhos
estes aproveitam a confusão
dos pára-quedistas já cansados.

Por isso cada pássaro que voa pelo céu
(luminoso como uma palavra boa)
deixa cair melancolicamente
o seu depósito de agradecimento
sobre as armas
e a estupidez dos generais.

Vorazmente, meu amor,
o destino da terra passa
e cria-se entre o ventre das armas
e o círculo da esquadrilha voadora
o futuro desta terra
que alarga e fermenta.

Tudo isto em Inhaminga,
com o tamanho deste país,
meu amor.


Heliodoro Baptista
Moçambique